A banheira de Deus

Helena Machado

"Por que eu não sou anjo"
Um anjo vestiu-se de anjo e permaneceu irreconhecível.
Um outro caiu do céu e despedaçou-se.
Um anjo estrangeiro tornou-se crente e afogou-se na banheira.
No céu, os anjos mortos são empalhados e pendurados na parede.
Eu prefiro permanecer imortal...
Aglaja Veteranyi

Crec, crec, as folhas secas fraquejavam sob seus pés, crec, crec, ela prosseguia palmilhando a indecisão que parecia se tornar cada vez mais certa. Mesmo com a caudalosidade do rio adiante, sentia os entornos sempre tórridos. E adentrava a selva carimbando as folhas até o barulho das pisadas, de tão corriqueiro, perder seu registro. O solo, ainda que úmido, parecia rachar feito um imenso bloco de gelo prenunciando a avalanche; as crateras abrindo rizomas assim como suas sinapses criavam raízes que se estendiam e se bifurcavam por todo o cérebro.

Porque olhava para fora sempre olhando para dentro, desde criança ouvia que seus olhos eram de louca. Já adulta, percebeu que tinha olhos de bússola, como as aves. No entanto, ainda que apontassem para o Norte, suas pupilas jamais conseguiram se estabelecer lá.

E então ela andava para frente, mas vacilava para trás, ciscava feito as galinhas que lhe causavam pânico naquele banheiro apertado do trailer que era a sua casa, as galinhas vivas que a mãe degolava, jogando os miúdos imprestáveis no vaso sanitário. Toda vez que ia fazer xixi, ela temia ver um pescoço cocoricando dentro da privada. Passou a mijar na pia. Agora, cada vez mais próxima do rio, as águas sussurravam em seus ouvidos fazendo cócegas, e ela seguia rumo à corrente como quem procura uma concha para prender aos tímpanos, e sentia na nuca o arrepio típico dos instantes que precedem a entrega.

Escolheu outubro, como se de fato isso fosse uma escolha, o mês em que o escorpião nasce, ele que se envenena com o próprio rabo. Outubro a estação reconfortante das folhas finalmente livres que vinham lá da copa das árvores planando rumo ao chão de pétalas roxas, beges e vermelhas, as mesmas cores que compunham a lona do circo que sempre foi a sua pátria, e ela pronta para mais uma acrobacia, sendo festejada pelas flores da mesma maneira que recebia confetes no picadeiro, e tal como quem entra no globo da morte, começou a girar em volta do próprio eixo, girava de braços abertos como os galhos das árvores, girava e girava feito um gato que tenta a todo custo apanhar seu rabo, girava e girava e via os flashs da natureza rodopiando, seus olhos pareciam máquina fotográfica a disparar paisagens de fora e de dentro

o esquilo cruza seu caminho à procura das nozes esquecidas
ela amaldiçoada pelo não esquecimento
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a sombra sem assombração da copa das árvores
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as folhas voando como cédulas de dinheiro
Nós teremos fama e ficaremos ricos aqui na Alemanha!
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Isso me dá cosquinha, pai!
O pé-direito baixo do trailer gritava alto, pedindo por silêncio
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o pé-direito alto do circo abafava os aplausos
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Hoje tem sopa do peito da galinha e amanhã tem sopa dos pés da galinha e depois de amanhã tem sopa das moelas da galinha e depois de depois de amanhã tem sopa do coração da galinh
A
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HHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH
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Suas letras se espalharam fazendo pontos cardeais com o vento, os berros antes sussurrados finalmente saíam aos quatro cantos, misturavam-se ao coaxar dos sapos e aos pios dos patos e ao som dos pássaros lançando agudos no céu, e atirar palavras era como reencontrar e se livrar um pouco daquela outra dela, a menina que se dependurava querendo desencaixar o quadril da cintura e criar metades de si própria, e rodopiando sem parar, deixou sua cabeça pender para trás, lá em cima o céu azul escarlate vazio de nuvens, a imensidão oca cortada apenas pela teias de aranha suspensas no ar, como os fios onde a mãe enroscava seus cabelos de aço, a cabeça para baixo da mãe tinha um pescoço mais fino que o da galinha prestes a ser decapitada, a mãe que a cada noite podia despencar lá de cima, e ela que não queria mas também queria que a mãe caísse, estava farta de tantas galinhas mortas, de tantos despertadores emudecidos, mas sabia que a mãe dava piruetas para passar por cima dos bolsos vazios, que mentira deslavada essa do pai!, o pai que queria tanto a fama e grudava as fotos da família na televisão, o pai que só vivia na imaginação, e a imaginação era também sua TV preferida, a TV de dentro da cabeça, quem dera que suas antenas não tivessem captado os malabares que o pai fazia entre as pernas da irmã, a irmã que também se embrenhava nas lendas para escapar do canal de sempre, e toda noite era a mesma coisa, dentro da casa nômade, a irmã lhe contava a história da "Criança que cozinha na polenta", enquanto a mãe, acrobata invencível, andava na corda bamba com os bolsos vazios. Só conhecia o cheiro do seu país pela comida da mãe. As beringelas assadas que cheiravam em todos os lugares, e ela que "abria a porta do trailer o menos possível para a casa não evaporar".

Agora, embrenhada na mata, via a aranha peluda e estufada costurando sua teia e não parava de pensar na mãe que fazia as vezes de artrópode com aquele monte de braços e pernas. Lembrou-se daquele dia, antes do embalo lá em cima, antes do pó de magnésio nos dedos sempre ressecados, olhou para o pai, o palhaço triste, tão triste como todos os palhaços, e viu a mãe suspirar a alegria que se esvai a cada furo da lona, a cada gota que entra, a cada falta de teto. E encarando os personagens que se faziam de sua família nus, encharcados, percebeu as manchas de fungos que se enroscavam nas árvores. E as lembranças se apoderavam dela como os parasitas abraçando os caules até o sufocamento.

Ou estaria em seus olhos de louca a crueza daquela espécie de pragas, a vertigem que ela jamais conseguiu apaziguar? Quem sabe, em vez de roubarem as árvores para si, os musgos estivessem ali em vista da troca?

De repente o mundo se fez tão cheio que caiu lá de cima. Talvez a chuva fosse Deus espirrando a bem-aventurança de seus brios que finalmente chegavam. A natureza era tão impressionante que não podia deixar de ser, a natureza não dependia dela mas também era ela, e ela acreditava em uma nova vida, pois se não acreditasse, se lhe apaziguasse a ideia do fim, coisa que na verdade a atemorizava, não teria a valentia de insistir na correnteza, e invadindo a selva cresceu-lhe o imponderável, na lama sentiu-se menos cambaleante do que nunca, seus apegos iam embora como a pasta d'água do palhaço que chora, e os bolsos antes vazios de seu vestido agora se enchiam de pedras cada vez mais robustas, cada vez mais pesadas, e então chegou na margem e viu a espuma criando barbas, o velho dentro d'água que refletia sua outra casa imensa lá em cima, molhou os pés, o gelo que anestesia as dores, enfiou as pernas e sentiu o quadril arrefecer no corpo da natureza, a cintura lambrecada pelo lodo úmido, os seios encharcados pelo rio, e logo suspendeu as pernas e deixou que os pedregulhos, os de fora e os de dentro, lhe levassem. E foi indo e indo e indo e, antes da queda na cachoeira, virou mar.

Não gritou. "Jogou sua boca fora!" 

HELENA MACHADO nasceu no Rio de Janeiro. Graduada em Comunicação Social pela UFRJ e formada pela CAL, é escritora, dramaturga, roteirista e atriz. Foi uma das vencedoras do Prêmio Toca Literária 2021 com seu romance de estreia, "Memória de Ninguém", que será publicado pela editora Nós. Em 2020, o primeiro capítulo do romance saiu na sexta edição da Revista Granta de Língua Portuguesa (InMemoriam). Participou da antologia de contos pandêmicos Parapeitos, organizada por Marcelino Freire, e teve contos publicados nas revistas portuguesas Pessoa, InComunidade e Mapas do Confinamento. Para o teatro, escreveu as peças "Sexton" , vencedora do Brasil em Cena, concurso nacional de dramaturgia (MINC e CCBB) , e "Aos peixes", vencedora do Festival de teatro do Rio. Participou da equipe de roteiro de filmes e séries brasileiras.

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