A palavra arde
seis poemas de Renata
Ferreira
I. olhar
uma mulher estilhaça a realidade
até sentir os cacos do real furando os olhos
não se trata de coragem, baby
é o feminino
não se fecha sobre si
não se deixa
conduzir
II. forma de vida
o animal em mim
morto
fede
mas não abandona o corpo
que segue
ereto
na medida do orgulho
os pés
cansados
fingem
uma humanidade
desmedida
enquanto
a cabeça
molde perfeito
sorri
para o inferno que a sustenta
III. congêneres
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
ORIDES FONTELA
devir
sujeito-objeto
alvo de apropriação
o que vejo me olha
insiste
reconheço
somos apenas objetos
sem pudor
conversando
sobre nossa artificialidade
condição
inumana
classificações
distintas
já não sustentam
hoje, não saberia responder
o que é a humanidade?
o que são as coisas?
IV. cães de Pavlov
há espanto em mim
não é possível
capturar teu
desejo
segurá-lo em
minhas mãos
encará-lo sem
horror.
espanta-me
esta forma
irrefletida
este "mal banal".
espanta-me
perceber os cães
de Pavlov
babando
ao meu redor
ao seu comando.
espanta-me
a renúncia
ao pensamento.
V. noir et blanc
o quarto branco
permanece
branco
há 30 anos
não diria nada
sem rabiscos
sem fotografias
sem história
filme mudo
exceto pelas
formigas pretas
pacientes
teimam em dizer
vagarosas
caminham como
legendas
- autossacrifício
-
VI. camera-eye
mergulho sem
fôlego
os cômodos estão
submersos
familiares e
amigos usam máscara de ar na mesa de jantar
felizes, não
possuem água em seus pulmões
em seus olhos,
uma câmera parada no pretérito
tento acompanhar
a conversa e sorrio
às vezes, boio
sobre suas cabeças
respiro...
numa tentativa de
não me perder
tento apertar o
botão do presente
a visão está
nublada, não o enxergo
na mente, um
filme eterno roda, roda, roda...
takes e
enquadramentos claros e diretos
meu corpo está
completo
chego à
superfície, tarde
já é noite no
mar-lar
as ondas são
livres, levam-me
à deriva,
entrego-me
RENATA FERREIRA nasceu e vive em Duque de Caxias (RJ). É doutoranda em Literatura Comparada (UFF) e pesquisadora do Real Gabinete Português de Leitura, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Mestre em Estudos de Literatura (UFF), bacharel e Licenciada em Português/Francês/ Literaturas (UERJ), e graduanda em Comunicação Social (UERJ). Atua na área de Letras, com ênfase em Literatura brasileira, principalmente com pesquisas sobre poesia contemporânea e literatura comparada, investigando os seguintes temas: corpo, paisagem, visualidade, memória, e as relações entre estética e política. Além das atividades de pesquisa, atua como revisora, redatora e produtora de conteúdo. Como poeta, publicou Clarão desassossego (Patuá, 2020).
Contato: renata_foli@hotmail.com