Anna Zêpa
?
Mainha, por que estou triste?
Estamos indo embora de casa?
Até quando vamos ficar no apartamento da tia?
Todas as nossas coisas couberam em uma mala?
A gente vai dormir no mesmo quarto?
Eu e meu irmão?
Vamos ver Painho só aos finais de semana?
O juiz falou a cada 15 dias?
Quanto tempo dura 15 dias?
Eu sinto falta dele?
Por que a gente que saiu de casa?
É mais fácil sair uma ou três pessoas?
Quando a gente se muda para a casa nova?
Vou ter meu quarto?
Você vai cuidar da gente sozinha?
Como é isso?
Por que na escola me chamam de filha de pais separados?
Isso é bom?
Não cansa fazer tudo sozinha? Acordar, levar na escola, ir trabalhar, ir pegar
na escola, almoçar em casa, levar na natação, voltar para o trabalho, chegar
para jantar e brincar com a gente?
Mainha, por que eu não lembro de nós quatro juntos em casa?
Painho vai ficar chateado quando souber disso?
Como teria sido se tivéssemos continuado todos juntos?
Eu lembraria dele me levando para a escola também?
Só mãe cuida dos filhos?
Faz 30 anos que saímos de casa?
Quanto tempo dura uma tristeza?
o pescoço é
o poço do corpo
na
esquina
as nuvens em debandada
eu
comprimida
a lua estática
estico
os olhos e molho
o céu
tecido de brincos
as
horas casam e
não cansam
de
cair em
coisa nenhuma
as
horas casam
e não cansam
de
cair
em
coisa nenhuma
as
horas
casam e não cansam
de
cair em coisa
nenhuma
as
horas casam e não cansam de cair
em
coisa nenhuma
as
horas
casam
e não
cansam
de
cair
em
coisa
nenhuma
o sol
nada
nas
veias velhas de
meu corpo
covarde
me
sinto
rodriguiana
vamos, é hora de morrer.
sabe aquele perfume que você me
deu?
até hoje deixo um restinho no frasco
para você não me deixar
as flores de plástico
que você comprou nos anos 2000
guardei
guardo embalagem
de ovo de páscoa Nescau Ball,
e de balas de leite Kopenhagen
tudo presente teu
guardo as embalagens
com o cartãozinho "de" "para"
porque quero ler teu nome
os números das tuas roupas
quero te dar o tamanho certo
calça 42
sapato 42
cinto 95
camisa G
meia 42
sunga G
acho que você não veste mais nada disso
guardo a passagem de ônibus
que você veio de Recife para
me ter
as alianças de brincadeira
o papel onde anotei as músicas
para melhor roer lembrando de você
tem asa de águia, chiclete com banana e limão com mel
aquela piranha de prender cabelo
ela tá quebrada
a lembrança não
guardo até o bilhetinho
onde você disse que Eu estava um porre
as páginas do bloquinho
onde você dizia eu te amo
toda vez que vinha na minha casa
e são tantas vindas
acho que você foi a pessoa que mais me disse
"eu te amo"
depois da minha mãe
Eu amava
botei na gaveta a cartinha onde você dizia
quero te fazer a mulher mais feliz do
mundo
eu tinha 18 anos
guardo também os bilhetinhos que você deixava
como se fosse outra pessoa
escrevendo seu nome dizendo que me amava
ou nossos nomes: Fulano e Fulana se amam
para todo mundo saber
bilhetes onde você apontava que
Você era o grande amor da Minha vida
olha só
guardo o adesivo do ovo de páscoa Mundy 600g
recebido em 03 de abril de 2001
o livro da auto-escola
guardo por teu nome
você me escrevia cartas
gosto disso porque as tenho
não sei como será a memória epistolar de WhatsApp
(digitei as mensagens de texto que recebi de você
e imprimi para sempre lembrar)
nas cartas você escrevia
meu nome completo
e teu sobrenome ao final do meu
e me pedia em casamento
agora nós tínhamos 20 anos
Eu acho que nunca levei a sério esses pedidos
mas foi bem sério quando a gente terminou
quando você terminou
ainda nas cartas você falava em comemorar
meu aniversário até o fim
das nossas vidas
e nunca mais me ligou
Eu nunca esqueci um aniversário teu
Eu não esqueço
e guardo bilhetes de cinema do último filme
que assistimos juntos em 2002:
tudo para ficar com ele
nuncas
vi uma estrela cadente
comi sushi no réveillon
tive filhos
beijei Rodrigo Santoro
namorei 3 anos
dei a bunda
dancei com Michael Jackson
conheci Madonna
comi jiló
servi ao exército
voei de helicóptero
matei o presidente
usei cueca
ganhei na mega-sena
plantei maconha
fui enterrada viva
me entendi
parei de doer
Foto: Mylena Sousa
ANNA ZÊPA (@annazepa) é multiartista e realizadora nas expressões de literatura, cinema e teatro. Faz parte dos projetos literários Ciranda: jogo de palavra falada (@cirandajogodepalavra), 37GRAUS e LITHERATÓRIO (@litheratorio). É autora dos livros Primeiro Corte e aconvivênciadosnossosrastros pelo selo do burro; Instantes Manhãs pelo selo comma; e da perda à pedra a queda é livre pelo selo demônio negro. A partir da poesia tem parcerias musicais com Kiko Dinucci, Alessandra Leão, Meno Del Picchia, Zé Nigro e Jonathan Silva.