A colônia do bicho homem

Paulliny Tort

Em Brasília, existiu um coronel, filho de fazendeiro, nascido já com terras e poder, católico de criação. Por anos, esse coronel se elegeu governador da cidade, distribuindo pães aos pobres e falando de modernidades que poucas vezes se cumpriram. Futuro, avanço e progresso eram palavras presentes em seus discursos, ainda que toda a sua figura remetesse a algo de um Brasil colonial. Foi do coronel a magnífica ideia de um trem-bala que ligasse Brasília a Goiânia, dando ao Centro-Oeste o pontapé que faltava para o surgimento de uma megalópole. O sujeito sonhava com uma conurbação tão intensificada que uniria duas capitais distantes duzentos e trinta quilômetros uma da outra. O trem-bala, último dos seus grandiloquentes projetos, custaria bilhões de reais e centenas de hectares de vegetação nativa. Mas, por fim, o coronel morreu e ninguém ouviu falar mais no estranhíssimo trem-bala Brasília-Goiânia.

Evidente que o velhaco nunca quis nada com a modernidade. Se essa gente tivesse interesse no dito progresso, ideia cada vez mais vazia de sentido, investiria em educação, em pesquisa, não em empreendimentos megalomaníacos como um trem-bala (não um trem, mas um trem-bala) no meio do Planalto Central. Não é segredo que grandes obras são a maneira mais fácil de escoar dinheiro público, a partir de uma trama de licitações que o povo não entende nem procura entender. Mas o que mais me impressionou à época do anúncio do trem-bala Brasília-Goiânia foi a quantidade de gente que se encantou com a proposta. Imagine, viver no coração de uma cidade sem fim. Seríamos uma nova São Paulo? Uma Nova Iorque? Uma Tóquio? Seríamos enfim cosmopolitas? A megalópole se ergueria e bum, uma era de facilidades e alegrias infinitas se estenderia sobre nós. Não seríamos mais gente da roça, do interior.

É que a urbanidade nos dá a ilusão do controle. Nos grandes centros, sentimos que moldamos o mundo a nosso bel-prazer, que o tornamos prático, que o tornamos confortável para alguns, que o estragamos quase por gosto. Feito Adão antes da queda, na megalópole, somos donos e senhores da criação. Descartes, em Discurso do Método, fala da invenção de artifícios que nos permitiriam fruir, sem qualquer esforço, os frutos da terra e as comodidades que nela se encontram. Nosso pensamento acabou muito marcado por esse ideal de autonomia em relação à natureza, algo que nas manchas urbanas se expressa mais intensamente; o alimento vem do supermercado, a água sai da torneira, os motores levam e buscam, a indústria cultural entretém. Os ciclos do planeta aparentemente não têm qualquer participação nisso. E quem não conhece uma criança que come salgadinho de frango todos os dias sem nunca ter visto uma galinha? Parecemos assim distantes do universo natural, quando, em essência, uma megalópole não é tão diferente de um cupinzeiro.

O filósofo Dominique Bourg, em um excelente ensaio sobre o progresso, diz que, stricto sensu, "fazemos parte da natureza e só podemos, no sentido dado pelas leis físicas, agir naturalmente"[1]. Seja com barro ou com concreto armado, é próprio do gênero Homo modificar o meio em que vive. Nossas megalópoles não fazem, portanto, oposição à natureza em si, sendo antes a expressão radical de uma habilidade adquirida ao longo de milhares de anos de evolução. Nossos arranha-céus, nossos anéis viários, nossas pontes, nossos trens-balas, tudo isso está em consonância com a natureza humana. Graças às nossas capacidades, colonizamos a Terra, estendendo nossos domínios sobre toda e qualquer fatia de chão, do Polo Norte ao Polo Sul. Seria uma história de sucesso, caso não estivesse alicerçada sobre aquela velha crença de sermos donos e senhores da natureza. Pois mesmo que colonizemos a Lua, que ergamos lá uma megalópole, não somos e jamais seremos donos e senhores de nada. Apesar do entusiasmo tecnicista, dos devaneios cartesianos, nosso intelecto, nossas habilidades não nos dão poder para tanto.

arte: Camila Assad

Primeiro porque não é possível que continuemos a alterar, no ritmo com que temos alterado, a paisagem, os outros seres e a nós mesmos sem consequências significativas. Sabemos que podemos causar o desaparecimento de nossa espécie e, certamente, o de muitas outras, que já mal cabem nas brechas verdes entre as cidades. Mas é importante entendermos também que, para a vida na Terra, sob uma perspectiva geológica, nossas travessuras são insignificantes. Se formos extintos por nossas ações, se extinguirmos todos os animais que conhecemos, todas as plantas, se esgotarmos todos os recursos, ao cabo de alguns milhões de anos, os micro-organismos remanescentes de nossas estripulias darão início a uma nova jornada da vida. Porque na verdade, no fundo, é assim, não estamos e nunca estivemos no controle, nem nas megalópoles nem em lugar algum. E, apenas para comparar potências, saiba que o arsenal nuclear das nações equivale a 12 mil milhões de toneladas de TNT, ou seja, um milhão de bombas de Hiroshima[2]. Por sua vez, um meteorito com dez quilômetros de diâmetro que se chocasse contra a Terra liberaria uma energia equivalente a 100 mil milhares de milhões de TNT, ou seja, cinco mil milhões de bombas de Hiroshima. E olha que para abalar a civilização não são necessários eventos astronômicos; bastam os cem nanômetros de um vírus. Então não se sinta muito importante quando cruzar uma megalópole, não se encante tanto pelo vidro e pelo concreto. É tudo apenas a gigantesca colônia do bicho homem.

Agosto/2020


[1] Natureza e Técnica: ensaio sobre a ideia de Progresso, de Dominique Bourg (Piaget, 1997)
[2] Dados de 1996, citados no livro de Bourg. 


foto: Raquel Pellicano

Paulliny Tort é jornalista, mestre em Comunicação e Sociedade e escritora de ficção. Seu romance de estreia, Allegro ma non troppo (Oito e Meio, 2016), foi finalista do Prêmio Oceanos de Literatura. Esteve à frente do programa « Marca Página », veiculado pelas rádios Nacional e MEC. Atualmente, produz e apresenta o podcast « Sem Papas - Literatura para novos tempos ».

paulliny.com


Camila Assad é caipira de Presidente Prudente (SP). Estudou Arquitetura e Urbanismo. Escreve, traduz, desenha e recorta porque acredita enfaticamente no "failbetter". É autora de Cumulonimbus, Eu não consigo parar de morrer e Desterro, obra contemplada pelo ProAC na categoria criação literária. Adora pesquisar e criar tudo que se relacione às cidades e sua dinâmica caótica. 

foto: acervo pessoal da artista

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