João Carlos Pinho, entre o concreto e o invisível

por Ian Uviedo

João, Talvez Alguém Esteja Lendo Isso Agora (ed. Patuá, 2021), é seu primeiro livro e reúne poemas de 2019 a 2021. Pode nos contar um pouco sobre o processo de seleção dos textos que compõem a obra? De onde veio o primeiro impulso que guia a unidade do livro?

O livro começou a ganhar uma forma embrionária quando eu cursei uma aula optativa de escrita criativa na faculdade, no segundo período de 2019. Como trabalho final eu tive que entregar um compilado de poemas que tivessem algum senso de unidade, e acho que tendi a criar algo mais simbolista naquele momento, gosto que os poemas soem um pouco como profecias ou feitiços e tentei que tivessem esse tom. Antes disso eu já escrevia, mas era algo sem muitas bases, um pouco mais genérico, e esse exercício de escrever para a aula me fez ler mais poesia, fez deixar de ser algo eventual, até pelas trocas que rolavam nos intervalos com outros amigos escritores. Sobraram alguns poemas dessa aula que usei no livro porque em algum momento da pandemia eu escrevi um sobre a quarentena (chamado Quarentena) e pensei que poderia juntá-lo com aquilo que havia feito nessa disciplina. Não tinha tocado neles desde as férias de fim de ano em 2019. Aí o bebê começou a engatinhar.

Acho que o impulso que guia a unidade do livro é pensar afetos, percebendo-os empiricamente como algo primordial para a vida em geral no momento em que as distâncias são incontornáveis, distâncias provocadas pelo vírus e a lembrança de uma vida anterior, por estar terminando a faculdade e voltando pensamentos ansiosos para uma vida assustadoramente adulta no horizonte enquanto o país em que vivemos esculpe suas novas ruínas, pensar esses afetos em sua ausência e presença. Eu tinha um pouco de receio do livro se tornar bastante pessoal, por certo preconceito, talvez, mas acabou que essa era a única forma que eu conseguia escrever nesse contexto, então tentei que fosse o mais honesto possível. A seleção do material do livro, por isso tudo, acabou não sendo tão difícil, a coisa toda desembocava para esse tipo de reflexão, lembro até de escrever um poema sobre espiões, tentando explorar outra escrita, mas soava muito irreal. Acabou fora do livro.

Pelo que conheço dos seus poemas, percebo uma certa vontade sua de combinar com equilíbrio as descrições concretas (do corpo, dos objetos, p. ex: ao quintal/ em silêncio de vento/ pinta/ a menina um quadro// molha o verde/ na água da bica/ enlaça o pincel com um pano) com um explorar contínuo do subjetivo e do invisível (os sentimentos, as sensações, p. ex: aquém civilização -/ o medo ululante da falta de/ amparo/ que conceitue qualquer/ desejo/ e separe nele seu gosto e desgosto), intercalando estes dois olhares em versos livres. Você saberia mapear as suas referências, nesse sentido? Que leituras te levam a este caminho?

Essa percepção foi bastante precisa, inclusive nos termos: a primeira seção do livro se chama "Do que é sólido/ e invisível". Creio que existe uma busca constante nos poemas de torná-los táteis, minha intenção muitas vezes é fazer alcançar com as palavras menos o significado mental e mais a sensação corporal em si, desvanecer a coisa toda em uma espécie de sinestesia. Isso tem relação com alguns filósofos, para entrar um pouco num teoriquês chato, principalmente com Merleau-Ponty, que foi um pensador que rompeu academicamente com a ideia ocidental de superioridade da mente sobre o corpo. Segundo ele, a gente pensa, percebe o mundo com o corpo, que não é só esse ente físico, e aí entra a subjetividade da coisa, mas toda extensão do nosso campo de experiência no mundo. Isso pra mim faz muito sentido, acho que penso esse invisível também como parte do que é corpo, concreto. Tem outros teóricos também: Jean-Luc Nancy, que escreve sobre o tato, Hans Ulrich Gumbrecht, que fala da presença na obra de arte etc. Na poesia, tudo do Paul Auster me assombra e tem um muito disso também. João Cabral de Melo Neto, de algum modo. Sandman. No Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa faz com que as cenas e as próprias palavras tenham fisicalidade, a sonoridade delas te encosta.

Nos conte um pouco sobre sua relação com a escrita. Você tem um momento e um lugar certos para escrever, ou a escrita vem de forma mais espontânea, independentemente do contexto? Antes de escrever você toma notas, faz pesquisas, ou os poemas se formam sobre si mesmos?

Quando começo a escrever eu sou bastante meticuloso, é um trabalho cansativo como se eu estivesse esculpindo, tem um bloco de palavras que é a ideia ainda um pouco bruta e eu vou modelando, reposicionando, trocando palavras, mas até começar mesmo eu sou bem indisciplinado, não tenho essa facilidade de parar e escrever com uma regularidade fixa, pensar que quero escrever, sentar e deixar fluir, isso é raro. Geralmente começa com uma frase quando eu estou pensando em qualquer coisa menos escrever um poema, lavando a louça, tomando banho, andando ou prestes a ir dormir, a frase tem algo diferente e fica ecoando na cabeça até eu anotar no bloco de notas do celular ou em algum papel, e a partir dela desenvolvo toda a ideia do que o poema vai ser. Nem sempre é assim, claro, tem vezes que eu vivo algo e fico com uma sensação ligada a um momento, isso geralmente envolve outras pessoas, alguma troca, uma conversa que tive com alguém, uma irritação, uma brincadeira, a arte de outra pessoa e aí é bom escrever logo em seguida quando o sentimento ainda tá fresco na memória, escrevo torrencialmente e depois vou editando. Consigo enxergar em pequenas partes dos poemas conexões com pessoas específicas, o porquê de ter usado um termo aqui ou uma frase de um certo modo. Minha pesquisa então tem sido meus amigos, minha família. Além disso, eu tenho por sorte um grupo de amigos poetas, que se reúne umas duas vezes por mês, as críticas, sugestões, outras visões, acabam sendo parte do processo de escrita, no meu ver.

Qual a influência do Rio de Janeiro no seu trabalho? Como a paisagem que você habita, somada aos encontros próprios do seu movimento individual pela cidade, entra dentro dos seus poemas?

O Rio de Janeiro é uma cidade bastante caótica. Grande demais, de modo que é difícil enxergar uma unidade nesse território todo, existem diferentes cidades aqui dentro, claro. Na Zona Norte, onde moro, eu gosto de caminhar bastante, passar pelos bares, praças, meu processo de criação tá intimamente conectado com isso, eu sinto que penso melhor quando tô andando e eu sou muito curioso pelas casas de frente de rua que eu encontro no subúrbio, tenho a impressão de que eu já parei para observar todas as casas do Engenho de Dentro. Nessa pandemia eu saio para caminhar toda semana, é uma questão de saúde mental mesmo. Isso também tem a ver com observar o movimento das pessoas, me dá uma sensação de pertencimento, é particularmente gostoso pra mim estar na rua no fim da tarde numa sexta ou quarta-feira, que é dia de jogo, e ver as crianças saindo da escola, as pessoas saindo do trabalho e indo pra casa ou lotar os bares, tem uma agitação costumeira nos fins de semana, sempre tem uma festa perto daqui, samba e pagode rolando, é uma sensação boa. Ao mesmo tempo, viver no Rio é conviver com a violência, não só no sentido de que provavelmente todo mundo que você conhece já foi assaltado ou de estarmos vivendo uma guerra entre tráfico e milícia ou de ser parado pela polícia vez ou outra dependendo de onde está, como está vestido e a cor que tem, mas também nos serviços, que são péssimos, no preço de tudo, na falta de integração urbana e no transporte público precário, a gente acaba introjetando isso no nosso comportamento. Uma vez uma amiga do interior de Minas me disse que quando ela veio para cá pela primeira vez, ela não entendia por que as pessoas estavam sempre falando de maneira irritada, para ela o modo que a gente fala normalmente é violento, e é mesmo, a gente naturaliza. Nesse sentido, a poesia acaba, por vezes, sendo um afastamento, uma viagem, um silêncio, uma forma de terapia, porque, honestamente, o Rio de Janeiro consome demais, é um custo alto para a cabeça morar aqui, apesar dos afetos e de rolês maravilhosos. Tem outras vezes que canalizo isso, essa violência, jogo o caos pro papel, mas é mais exaustivo, arde.

Na nossa troca de e-mails, você falou sobre a criação da revista eletrônica Casulos. Pode nos contar um pouco sobre esse projeto?

O Casulos surgiu por um impulso do Pedro Ávila, um amigaço-aço meu, e seu amigo, Lucas, de terem um espaço coletivo para escreverem textos de análise e o que quer que fosse sem muitos pormenores, acho que a faculdade cria na gente várias neuroses com isso, nós precisamos para falar de arte com propriedade estarmos armados com vários argumentos de autoridade e seguir essa forma impessoal pretensiosamente neutra que me soa meio boba às vezes. A revista é um lugar que essas questões não entram tanto, você só escreve, manda e se for legal, tiver potência, vai pra lá. É tão simples que é maravilhoso. Estamos aceitando material (casulosblog@gmail.com). E o link para o site é: https://casulosblog.com.br/.

Para terminar, pode indicar para o público leitor da REVISTARIA um poeta ou um livro de poesia?

Abrir e fechar cancelas, da Luiza Oliveira, publicado pela 7letras, uma querida, lançou esse livro esse ano. Érica, irmã dela, também escreve muito bem. Ecolalia, estreia da Giu Benincasa, lançado pela Urutau.

Sou suspeito para falar, mas aguardo ansioso o lançamento dos livros do Alan Cardoso da Silva e do Pedro Ávila.

Desculpa, é impossível não trapacear com essa pergunta. 


JOÃO CARLOS PINHO é poeta, estudante de literatura, carioca, torcedor do Flamengo, coleciona projetos não terminados e ideias pretensiosas. Talvez alguém esteja lendo isso agora é seu primeiro livro e, se tudo der certo, o último.

Publicamos alguns poemas dele nesta edição, aqui.

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