A benza é fé no amor

Morgana Kretzmann e Babalorixá Tafarodé

SOBRE AS ROTAS DAS BENZEDEIRAS EM SANTA CATARINA

Florianópolis já havia ganho um mapa de benzedeiras e benzedores na cidade, num trabalho feito por uma equipe comandada pela cientista social Tade-Ane de Amorim. Desse mapa foram registradas 16 benzedeiras, em que percebemos que a maioria são mulheres, já idosas e de pele clara.

O ato de benzer foi durante muito tempo a opção de cura para muitas pessoas que viviam em Florianópolis no século passado, sobretudo numa época em que o acesso à medicina era mais difícil. (AMORIM, 2017)

Depois, pesquisando outra rota de benzedeiras, encontramos no site do IPHAN informações sobre um projeto do próprio IPHAN e do Ministério da Cultura (Minc): Mapeamento e Patrimônio Cultural Imaterial de 2012, que tinha como objetivo o desenvolvimento de uma rota de benzedeiras do oeste de Santa Catarina, com o propósito de salvaguardar a cultura das benzedeiras dessa região. No próprio site diz que a maioria das benzedeiras são/eram de origem cabocla e com heranças africanas e indígenas, de onde tiraram seus saberes, o que as diferencia das benzedeiras de Florianópolis que são de origem açoriana:

Durante o desenvolvimento dos projetos foi observado que, na maioria dos casos, os benzedores e benzedeiras eram de origem cabocla e herdaram saberes das gerações passadas. (IPHAN, 2012).

BENZEDEIRAS NO BRASIL

Há poucos, porém relevantes documentários e artigos produzidos no Brasil sobre as benzedeiras no país. Entre eles, Mãos que Curam, Palavras que Saram, documentário que conta mais da história das "médicas e médicos do povo" no Brasil. É necessário ver a prática da benza, como um importante elemento de cultura popular e, logo, como patrimônio imaterial das regiões onde essas senhoras e senhores viveram e fizeram história. As benzedeiras e benzedores no Brasil surgiram com a chegada dos Jesuítas, no século XVI, aumentando ainda mais no período colonial, e se tornaram figuras presentes na cultura, na vida e na história do povo até hoje, principalmente daqueles que vivem em regiões mais remotas e onde médicos e medicamentos não estavam e ainda não estão presentes no cotidiano das pessoas que os cercam. O ato de curar por meio não convencional é visto como um patrimônio imaterial da cultura brasileira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

No artigo acadêmico "Benzedeiras e benzedeiros* quilombolas - construindo identidades culturais", que trata justamente do processo de construção das identidades culturais e religiosas dos benzedores e benzedeiras de quilombolas fazendo um levantamento desde o período pós-colonial, está referido que:

As práticas tradicionais e as religiosidades sincréticas, que moldam os cosmos particulares dessas mulheres e homens, promovem o movimento dialógico que oferece os elementos importantes para a formação das identidades coletivas das suas comunidades. (MENDES e CAVAS, 2017).

GAROPABA E IMBITUBA

Fizemos um levantamento através de entrevistas com moradores locais, telefonemas e conversas via redes sociais, de que há pelo menos dez benzedeiras nas cidades de Garopaba e Imbituba, e confirmamos que há benzedeiras com origem açoriana, cabocla, indígena e africana. Somente uma delas, Dona Adelaide, do Quilombo da Aldeia em Garopaba, aceitou ser entrevistada para esse ensaio.

Dona Adelaide - Benzer não se aprende.

Dona Adelaide benzedeira

Numa tarde quente do mês de abril, com o sol abrasando nossos ombros e braços desprotegidos, saímos a pé da SC 404, passando o bairro Campo Duna em Garopaba e pegamos uma estreita estrada de chão para entrarmos no Quilombo da Aldeia, onde mora a Dona Adelaide, benzedeira com quase noventa anos de idade e mais de setenta de profissão, como a própria nós disse. Chegamos em frente a uma casa de alvenaria branca, com telhado, portas e janelas azuis celestes, como a cor dos olhos da Dona Adelaide. Ela estava dentro da casa, na sala logo na entrada, local onde mantém suas imagens de Nossa Senhora, São Jorge, Jesus Cristo, de uma coruja, uma mandala; na parede estão emoldurados os certificados de títulos de honra ao mérito que recebeu, e também compõem o lugar uma cadeira grande e um pequeno sofá. Paramos na porta e pedimos licença para entrar, ela com um grande sorriso nos convidou a sentar. Estava vestida com uma blusa branca, uma saia rodada preta com flores brancas e um delicado chapéu xadrez estilo aviador. Logo percebemos uma senhora de 86 anos, segundo ela, 90, segundo os netos, vaidosa, elegante, alegre e muito bonita. Nos disse, orgulhosa, que seus olhos azuis eram herança do seu avô alemão, e que sua pele retinta, uma pele linda, sedosa, era herança de sua avó preta.

Nossa primeira pergunta foi sobre como e quando ela havia se tornado benzedeira. Nos relatou que aos dezesseis anos, vendo ao seu redor todos os seus amigos e parentes doentes, sem nenhuma assistência médica por perto, recebeu uma espécie de chamado do céu e começou a benzer e curar as pessoas da sua pequena localidade. Logo a fama se espalhou e ela começou a receber pessoas de toda a Garopaba. Hoje em dia pessoas do Paraná, Rio Grande do Sul, interior de Santa Catarina e até de São Paulo vem se benzer com ela. Um desses pacientes de São Paulo, segundo ela, inclusive lhe deu a casa em que ela mora, depois que lhe curou de uma grave doença.

Durante a entrevista, todo tempo ela repete a frase "Eu amo Jesus. Jesus te ama." Se declara como católica e assim percebemos também nela o sincretismo religioso já muito atribuído à mulheres e homens que praticam a benza. Segundo o HOUAISS (2010):

Benzer, na liturgia católica o verbo transitivo direto tem, dentre outros significados, o de invocar, traçando o sinal da cruz no ar, ou ainda santificar ou consagrar (coisa ou pessoa) ao culto de Deus, ser favorável a, abençoar. (Houaiss, 2010).

Ela acredita que benzer é um dom recebido de Deus. Que não se aprende. Não se ensina. Diferentemente do que afirmam, por exemplo, dois pesquisadores da Universidade Federal do triângulo Mineiro, em pesquisa feita em comunidades de São Paulo e Minas Gerais, neste artigo acadêmico:

A maioria relatou a transmissão do ofício a partir de um familiar, destacando a prática da benzeção como algo que pode ser ensinado, aprendido e transmitido por meio da tradição oral. Mesmo assim, o ofício também é compreendido como um dom inato que atravessa o desenvolvimento, o que requer dedicação, paciência e abnegação. (MARIN e SCORSOLINI-COMIN, vol 37, 2017)

Dona Adelaide não tinha antes, nem tem hoje, ninguém na família que pratique a benza, por isso também, por sua própria experiência de vida, acredita que para ela veio através de um chamado, como ela diz, um dom.

Ela também afirma que a benza é uma troca, entre quem dá e quem recebe. Sem fé dos dois lados, o resultado não será alcançado. Ela acredita na troca do amor, assim como Santo Agostinho. Dona Adelaide diz que amando a pessoa que recebe a benza, e sendo amada por ela, e ambas amando a Deus e a Jesus, tudo ocorrerá efetivamente. O amor é o centro de tudo, segundo ela. Assim como para Santo Agostinho que achava que o amor deveria ser a lei da ação. Agir por amor.

Entre as tantas doenças e pedidos que a ela já chegaram, segundo a própria está a cura de um câncer, doença do coração, da bexiga, de pele, dores de cabeça, além dos casamentos que diz ter trazido para homens e mulheres, assim como a volta de filhos e maridos, que haviam partido, retornando para suas casas.

Sobre as curas de doenças, precisamos deixar claro, entender que os benzedeiros, também conhecidos por muitos como curandeiros, estudam sobre ervas e plantas medicinais, e praticam com elas, fazendo assim com que se tornem cada vez mais experientes. Muitos banhos, chás, emplastos e até mesmo amuletos são feitos com ervas e plantas que essas pessoas usam.

Num artigo científico escrito por estudantes da Universidade Federal da Paraíba fala que:

As bezendeiras, rezadeiras ou simplesmente as curandeiras tem como atividade a reza, o qual são realizadas às preces junto a gestos e o uso de algumas plantas ou ervas, num ritual que visa proporcionar a cura e o bem-estar da pessoa doente. Muitos acreditam que tal ação é folclore, mas já existem muitas pesquisas científicas no campo da espiritualidade na prática clínica o qual visa seus efeitos da cura pela fé. A reza é vista como um importante elemento na cultura popular brasileira, e ela possui suas origens no sincretismo religioso. (DINIZ; Co-autor: DINIZ, 2018)

Terminamos nossa entrevista com Dona Adelaide e ela insistiu em nos benzer antes que fossemos embora. Fez previsão sobre nossos futuros e disse em alto e bom som coisas que desejava para nossas vidas, sempre repetindo muitas vezes as frases, "Eu te amo. Jesus te ama. Eu amo Jesus."

Dona Adelaide benzendo Morgana

Saímos de lá tendo a certeza de que aquela é uma mulher que busca acima de tudo ser boa, ajudar os outros por realmente acreditar no amor e ter uma fé inabalável nele. Como disse o antropólogo João Baptista Borges Pereira, em uma entrevista para o Globo Rural do dia 5 de novembro de 2017, sobre benzedeiras:

No Brasil está desde o descobrimento porque é uma herança do catolicismo português. (...) No Brasil, a benzedeira passa elementos sincréticos, misturados, com influências indígenas e africanas, ligada às influências portuguesas. Elas tinham uma preocupação grande de fazer o bem. As benzedeiras fundamentalmente são pessoas do bem. (PEREIRA, 2017).

Benzer vem do latim bene dicere, que significa bendizer, ou seja, dizer bem de alguém e fazer o bem a alguém. Dona Adelaide, cumprindo sua missão aqui na terra, como ela mesma diz, parece ter sido muito bem sucedida na sua bene dicere, assim como todas as mulheres e todos os homens que seguem fiéis a essa tradição centenária, que já faz parte da história e da cultura do nosso país.

Para benzer é preciso uma inclinação, isso nós pudemos constatar, a de perceber, alcançar e incorporar uma empatia consubstanciada, fundamentalmente, no amor pelo outro, pelo ser humano; algo que pode parecer corriqueiro, mas não é.

Mapa dando a localização das duas cidades ao sul do estado de Santa Catarina. 

*os termos benzedeiro e benzedor são empregados quase na mesma proporção pela comunidade estudada e também em artigos acadêmicos.

Bibliografia:

AMORIM, Tade-Ane. G1 - SC, Florianópolis, 28 de nov. 2017 https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2019/01/28/florianopolis-ganha-um-mapa-com-as-benzedeiras-e-benzedores-da-cidade.ghtml - Acesso em: 13 de abril de 2019.

NO Quintal da Casa de Madeira: Saberes, fazeres e dizeres dos benzedores e benzedeiras do Oeste de Santa Catarina. IPHAN. Disponível em: https://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1174/ - Acesso em: 13 de abril de 2018.

MENDES , Dulce Santoro e CAVAS, Claudio São Thiago. Benzedeiras e benzedeiros quilombolas - construindo identidades culturais. Scielo,2017.Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/inter/v19n1/1518-7012-inter-19-01-0003.pdf - Acesso em: 29 maio.2019.

HOUAISS, Antonio (Ed.). São Paulo, 2010.

MARIN , Raquel Cornélio e SCORSOLINI-COMIN , Fabio - Desfazendo o "Mau-olhado": Magia, Saúde e Desenvolvimento no Ofício das Benzedeiras. Psicologia: Ciência e Profissão Abr/Jun. 2017 v. 37 n°2, 446- - Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/pcp/v37n2/1982-3703-pcp-37-2-0446.pdf - Acesso em: 5 jun.2019.

DINIZ, Ericka Ellen Cardoso da Silva; Co-autor: DINIZ, Emerson Cardoso da Silva. A arte de curar: saberes e práticas de rezadeiras e bezendeiras no cuidar da saúde, V CONEDU Congresso Nacional da Educação, 2018. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/TRABALHO_EV117_MD1_SA6_ID8014_17092018225050.pdf. Acesso em 5 de jun. 2019.

SABEDORIA antiga dos benzedores une plantas medicinais, orações e fé . Globo Rural, 5 de nov. 2017 . Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/globo-rural/noticia/ 2017/11/sabedoria-antiga-dos-benzedores-une-plantas-medicinais-oracoes-e-fe.html. Acesso em: 5 de junho 2019. 


Nota: Eu e o Babalorixá Tafarodé fomos colegas de faculdade no curso de Gestão Ambiental pelo Instituto Federal de Santa Catarina. Este ensaio sobre as rotas das benzedeiras foi escrito e publicado pelo Campus Garopaba para a unidade curricular de Patrimônio Cultural e Imaterial no ano de 2019. Aqui separei algumas partes dele para postar nesta edição da RevistaRia que aborda o tema Espiritualidade & Fé na Literatura.

Morgana Kretzmann é escritora, autora do elogiado romance Ao pó, seu livro de estreia. Roteirista, atualmente trabalha em um novo projeto de série para uma plataforma de streaming. Editora da RevistaRia, a revista literária da Ria Livraria, que logo, torçamos, estará com suas portas reabertas. Atriz, atuou em diversos filmes, séries e peças de teatro, entre eles o curta-metragem, premiado nacional e internacionalmente, A Pedra, que abriu o Festival de Gramado de 2018 junto com longa-metragem Bacurau. Trabalha atualmente na produção de dois novos romances policiais que se passam no interior profundo de um Brasil extremo ainda desconhecido.


Babalorixá Tafarodé do Ilê Asé Tafarodé Olodomin é iniciado no Candomblé há nove anos. É também formado em Gestão Ambiental pelo Instituto Federal de Santa Catarina.

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