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Thais Lancman

Isso é uma piada interna.

Em 1979, Sherrie Levine fotografou as fotografias de Walker Evans do catálogo de exposições Primeiro e Último. Sua afirmação pós-moderna de que se poderia re-fotografar uma imagem e criar algo novo no processo, critica a noção modernista de originalidade (embora crie uma originalidade pós-moderna alternativa no processo). Em diálogo com o teórico Walter Benjamin, que explorou o relacionamento da reprodução à autenticidade artística, a reprodução se torna a experiência autêntica.

Em 2001, Michael Mandiberg digitalizou essas fotografias do mesmo livro e criou um site para facilitar sua divulgação. Fez isso tanto como crítica quanto como colaboração, para uma expressão de Sherrie. Ao digitalizar essas imagens, traz a crítica de Levine para a era digital: é cada vez mais provável que as imagens sejam vistas na tela do computador, e não em um livro; Da mesma forma, as ferramentas de produção de imagens mudaram para a mídia digital.

Em 2020, Thais Lancman copiou e colou trechos do site de Mandiberg no tradutor do Google, salvou-os com mínimos ajustes em um arquivo Word, descreveu minuciosamente as fotografias escaneadas por Michael e, com isso, elaborou um conto. Se Mandiberg discute, com a digitalização, a facilidade do acesso e da circulação, o texto, uma tecnologia tão arcaica, ainda é a melhor forma de tornar o visível leve como uma brisa e portátil feito uma moeda.

arte: Pego de surpresa, bordado de Rita Alves sobre foto de Renata Malachias


MM: Bom, aqui estamos de novo. Como tem passado, minha querida? Viu que eu cortei o cabelo?

SL: Na verdade não percebi, sabe como é, não sou muito atenta a esse tipo de coisa. Entretanto, eu agora adotei essa mecha branca. Me dá um ar de Susan Sontag, ou de Pepe le Gambá, mesmo

MM: Eu achei da mais pura elegância. Aliás, interessante suas escolhas. Nunca a vi imitar nenhuma mulher que fosse, apenas homens, para não dizer personagens de desenhos animados. Sempre homens, e tão sérios, sisudos.

SL: Pois eu tendo a acreditar que Pepe le Gambá é muito mais sério que todos os artistas de cujas obras eu me apropriei. Veja como ele persegue sua amada, e como é fiel a si mesmo sem jamais pensar em abandonar o seu cheiro. Ele confronta ambas as verdades com igual potência, sem perder o pé de nenhuma delas. Egon Schiele, por sua vez, jamais conseguiu equilibrar as paixões. Talvez porque elas arrefecessem ocasionalmente, ou porque às vezes se envergonhasse delas. Nesse sentido, Pepe le Gambá é muito mais sério que Egon Schiele. Me faz chorar, enquanto Schiele, os quadros dele que já vi tantas vezes que os tenho armazenados na memória, ganham progressivamente uma comicidade que beira o ingênuo.

MM: Imaginei agora Pepe le Gambá e sua amada como o casal de A Noiva do Vento e a imagem veio imediatamente na minha cabeça, embora essa pintura sempre pareça fugidia e eu não assista a um desenho animado há muitos anos.

SL: Mas foi você quem mencionou Pepe le Gambá!

MM: Não, foi você.

SL: É verdade, você me comparou a Susan Sontag.

MM: Não, isso também foi você.

SL: Veja só, me apropriei da memória de você dizendo algo a mim. Do mesmo jeito que você apropriou A Noiva do Vento por Schiele, porque o quadro na verdade é do Kokoschka.

MM: É possível fotografar a memória?

SL: É possível não a fotografar?

MM: Se pudéssemos fotografar esse nosso encontro, como seria?

SL: Seria um autorretrato de Francesca Woodman. Ela sentada sobre um espelho emoldurado posicionado no chão. Uma toalha o cobre parcialmente. Uma mão toca diretamente o espelho, a outra não se vê. Veste uma malha de tricô com gola V e uma blusa branca por baixo, a qual se percebe apenas por uma faixa estreita que escapa na região da cintura. Os cabelos estão presos em um coque frouxo. Ela olha para cima, mas não diretamente para a câmera. A cabeça desfocada sugere que ela se movia no momento em que o obturador disparou.

MM: No reflexo no espelho, é possível ver detalhes de sua blusa, nervuras na região do peito. Também alguns quadros na parede, pelo menos dois, pregados a uma distância de um dedo ou menos, o suficiente para produzir uma sombra. Seu rosto não aparece no espelho, apenas um queixo quase pontudo e duas mechas de cabelo que se sobressaem em relação a uma massa escura e bagunçada, duas serpentinas independentes dando voltas e chegando a algum ponto misterioso do reflexo.


O homem está parado e de frente para o fotógrafo. Seus cabelos são brancos ralos mas não chegam a deixar espaços vazios, exceto as entradas laterais, cortadas de forma a deixar um discreto topete. Próximo às orelhas, quase não se vê fio algum, deixando-as em evidência. A orelha esquerda, para o observador, é um pouco mais afastada da cabeça que a direita. Os olhos são apertados, estreitos como os lábios, que estão cerrados. O nariz é fino, com a ponta levemente arredondada, e iluminado de forma a clarificar toda a região central do rosto. Há vincos na testa e ao lado de nariz e boca, chegando ao queixo.

O homem veste uma camisa branca de colarinho apertado sobre a pele flácida do pescoço. A gravata com círculos claros sobre fundo escuro, compondo um padrão geométrico, está bem ajustada na região do nó e um pouco para fora antes de desaparecer sob o paletó. O paletó, que na fotografia é cinza claro, tem dois botões fechados, algumas marcas de amassado e gola com entalhe, caracterizando o modelo americano da peça de roupa.

Os ombros mais estreitos que a região abdominal indicam que o homem tem o formato a que se identifica com a pêra, o que é evidenciado também pelo que parece ser a marca do cinto apertando a barriga na parte mais larga do homem. Os braços estão ao lado do corpo, as mãos repousadas sem posição definida, a esquerda (para o homem) portando aliança no dedo anelar. A calça, mais clara que o blazer, é listrada formando um desenho vertical, o que se costuma dizer que favorece a impressão de um corpo alongado.

Atrás do homem, observa-se uma parede de tábuas de madeira e o pedaço de uma janela, telada no canto superior direito. O enquadramento do homem segue aquilo que convencionalmente se chama plano americano, limitando o retrato a um corte um pouco acima dos joelhos.


Thais Lancman - Escritora e doutoranda em Letras, publicou Palito de Fosfeno (2014, ed. Reformatório) e Pessoas Promíscuas de Águas e Pedras (no prelo, ed. Patuá). Atualmente vive em Portugal.


Rita Alves é artista visual. Criou a marca de bordados Dona Rits (@donarits) e é idealizadora do projeto de intervenções urbanas bordadas Cabe Mais Amor (@cabemaisamor). Além de ministrar oficinas de bordado livre, também é integrante do projeto Bordado e Literatura (@bordadoeliteratura). Em 2019, expôs na Casa Elefante a mostra Agulhada, com fotos bordadas e foto-objetos.

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