Não se bebe duas vezes no mesmo bar

Xico Sá

Não se bebe duas vezes no mesmo bar, dizia um certo boêmio pré-socrático que frequentava a Mercearia São Pedro bem antes do corinthiano Doutor Sócrates.

Não se bebe duas vezes no mesmo bar da mesma forma em que não se repete nas mesmas águas o banho no rio de Heráclito, 500 anos antes de Cristo.

Os garçons não serão os mesmos, os fregueses idem, o blues espiritual ganha outro compasso e a humanidade ficará dividida em duas bandas: a dos que precisam beber e a dos que bebem sem desculpa alguma. Ao final da noite, em coreografia chapliniana, os dois grupos erguerão até a cumeeira um brinde às suas diferenças.

Não se bebe duas vezes no mesmo bar, sob a pena de não valer a viagem, o que interessa é dar 80 voltas ao mundo em novíssimas neuroses.

Seja em Éfeso ou no morro da Vila Madalena, o ecossistema muda a cada noitada, por mais que a sensação térmica seja a de uma eterna saideira.

Apenas e tão-somente o pastel de carne-seca segue imutável, com a mesma consistência divina, nordestina e paulistana - para o acalanto de Irene mesmo antes de criar dentes.

Não se bebe duas vezes no mesmo bar, mesmo quando você chega e o França pergunta só por perguntar "o de sempre, amigo?"

Não se bebe duas vezes no mesmo bar, mesmo que seja um recinto meio intelectual meio de esquerda, na definição de Antonio, cronista da segunda e inoxidável geração Prata a sentir as mutações etílicas da casa.

Porque só as ressacas se parecem entre si, os porres são lindamente diferentes, cada um à sua maneira, por supuesto.

Não se bebe duas vezes no mesmo bar em que a garrafa de pinga dinossáurica flerta com o Diabo Verde, que por sua vez cai de amores pela Jurubeba Leão do Norte.

Não se bebe duas vezes no mesmo bar camaleônico à David Bowie, que virou locadora, cineclube, café filosófico, cachaça pensadora, revista, livraria e academia brasileira das letras bêbadas.

Não se bebe duas vezes na mesma Mercearia São Pedro e tampouco voltaremos os mesmos depois da quarentena.


Ilustração: Irene Sá 

Foto: Larissa Zylbersztajn

Xico Sá, nascido no Crato em 1962, é jornalista e escritor, autor de Big Jato (cia. das letras, 2012), Sertão Japão (casa de irene, 2018), entre outros. Atualmente contribui como colunista e cronista para os veículos El País e SporTV. Além de futebólatra inveterado, ocupa uma cadeira de destaque na história da Mercearia São Pedro.

Irene Sá tem três anos de idade e é a mais jovem ilustradora brasileira, quiçá do mundo. 

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