Poemas

João Nunes Junior

rotineiros

a manhã
com seu eixo
triste

um véu rasgado
o aço apaixonado
sozinho
na praça do sol
onde o próprio sol
descasca

a saliva não amolecerá
a casca do destino

As cartomantes tentam,
o búzios,
por que adivinhar?
Vá primeiro ao banheiro
depois seguimos a viagem
dentro do hiato há
um caminho trilhado
os passos envelhecidos
condensaram a terra

Colocamos para tocar um samba
aquele sobre o infinito

armado samba - até os dentes:
um escorpião letrado

um pão doce
esquecido na pia
é um palácio
para as formigas

que vão e voltam

os pequenos
desejos
descascando
os grãos
de oxigênio

na cozinha. Queres
um veneno
eu quero um beijo

Quem envenenou
a noite?

Quem a vestirá
para o velório? As
flores bocejam:

teu corpo é o idioma
da cidade.


saudade

queria poder te dizer:
achei o mesmo suco
dois reais mais barato.


tríptico

manhã

este medo de abrir a porta
e ver que o mundo
partiu ontem,

noite

este medo de fechar a porta
e nunca mais ver
a criança de onde parti,

madrugada

este medo de fechar os olhos
e meu reflexo sair por aí
contando tudo o que sabe.


diluição

me diluo na multidão

o corpo está
com pressa

- ele é quem pagará
a conta
a inspiração que me move
é o soco
o berro caindo da boca
do estômago

moer os dentes
do estômago até
a gramatura
de uma montanha

o ar rastejando
pela traqueia

ferido soldado correndo
para o triste
aniversário de uma
tia

o sucesso é uma expressão do desprezo
o despreparo do desejo
o ácido em quantidade irrisória
ainda assim escorrendo pela maçã
do rosto

o amor é um negócio milenar? a família vale quanto
na NASDAQ?


uma ciência
no tempo
e no fogo

uma exata
combinação de
espera e pressa
na precisão
do cozimento

cozer o desejo
até que
desapareça?

um oportuna combustão
a saudade numa
panela
um piano incendiado
no pátio

NY é o que dizem
os cineastas americanos
o centro de SP para
mim é a réplica de algo
que não conheço
ainda assim esqueci
em algum lugar antes de...

quantos moradores
de rua
se acotovelam
dentro
da esperança?

Enjoo no balanço da praça
urino
na publicidade
do banheiro

Dissolvo a pedra
de gelo
com meu calor
se desfazendo

quem esse menino
no espelho
quer que eu seja?


essências e circunstância

1.

cartas são coreografias
Cápsulas antigas de um veneno
doce, um xarope
a entupir de açúcar o vazio
dos dentes antes da fome.

2.

se a solidão vencer
quero que queimem todos
os poemas de amor
A fumaça pelo instante
em que soar valerá
nesta sala mais do que ouro.

3.

o dólar a quase 6 e nós
aqui lidando com as estrelas
enquanto o suor retorna
para as cavernas do amor.

4.

o amor urina
sobre a pólvora.

5.

não há mobília que
sustente este apartamento
enquanto não chegas.

6.

não há luz que dê conta
desta sala enquanto
tua nudez não desabotoa
a blusa azulada de saudade.


procura

somos ilusões orquestradas
A educação resume-se a isso:
oferecer alguma ordem ao espanto,
o adestramento dos
compassos (decoramos
as mortes que
queira-se ou não
precisam ser reutilizadas).

Levaremos a urgência
para abri-la:
um brinquedo de
engrenagem complexa

um reflexo de nossas
possibilidades azedadas

Por que
nos despedaçamos?

Chegam mancos
os carros
arrastados pela fome

hematomas
evaporam das
águas
onde o verão vacila

Longe
de todos os ritmos
queria que
os barulhos
renunciassem

Não quero me render
a nenhuma grandiosidade
quero ser o pasto
para minhas dúvidas

quero dirigir até
o lado oposto
onde o mar se lava
antes de retornar

onde deus é tudo o que
não vemos
é a África e a China

teus dedos educarão
as minhas coxas
um guarda pedirá
que sonhemos em voz
baixa

só eu saberei a mutação
do teu riso
até o líquido.

Nossas sedes aplaudirão
o sol
engasgado
na saliva

todas as noites os horizontes se aninham,
dormem conosco

Somos as conchas onde os acasos se encostam
abrimos os olhos e vemos
                                                  rastros
                                                  restos

as cascas secas dos beijos de amor, vamos além
somos os rios que restam na memória antiga dos cascos

Navios em poças d'água minúsculas: a ambição
de morarmos no reflexo
Um nó quente a dada altura das possibilidades

a urgência carcomida: um coração obstinado a procurar
do que são feitas as asas.
Um coração a escorrer pela rotina em busca de uma fresta
um orifício
um gemido.


despedida

aos poucos tudo é
verdade.



João Nunes Junior é poeta, escritor, roteirista, advogado. Participou, nos últimos anos, da equipe de organização da FestiPoA (Festa Literária de Porto Alegre). Nascido em São Gabriel (RS), em maio de 87, hoje mora entre São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS). Publicou, em 2019, seu primeiro livro de poemas, A Parte Viva da Noite, pela Editora Diadorim. Tem poemas publicados em algumas revistas literárias do país, prepara o seu segundo livro de poemas e se aventura na realização de um romance. Contatos: www.instagram.com/joaonj e joaonj@gmail.com  

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