Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci

Joca Reiners Terron

Em um ensaio sobre técnicas para escrever que está em The Adding Machine, William S. Burroughs ensina a arte de se tornar invisível: "ao caminhar por uma rua qualquer, tentem ver todos os que estejam nela antes de serem vistos. Assim vão descobrir que, se os virem primeiro, eles não verão vocês, e isso vai lhes dar tempo para observar, talvez guardar para um uso futuro. Aprendi esse exercício com um velho capo da máfia em Columbus, Ohio".

É um exercício que coloquei em prática antes mesmo de o conhecer, já que nas ruas de São Paulo todos somos invisíveis. Evidentemente, sempre haverá aqueles que são mais invisíveis que outros, e naquela tarde de 1998 eu chegava a ser transparente, vinha perdendo visibilidade dia a dia, quando vi Roberto Piva estacionado do lado de lá da rua, olhando algo indiscernível que talvez fosse eu, ou alguma coisa mais interessante ao meu redor. Piva tinha a mão direita sobre os olhos, imitando a aba de um boné como fazem os escoteiros para enxergar longe. Com a esquerda, carregava uma sacolinha de supermercado.

Debaixo da minha capa de invisibilidade, me perguntei o que o poeta estaria olhando com tanta atenção: quem sabe as miragens no deserto das ruas, alguma onça fantasma atravessando a Alameda Barros, ou a alma de André Breton na caçamba do caminhão de mudanças? Talvez estivesse só ouvindo o último suspiro da cidade que um dia existiu aqui, neste lugar abandonado de hoje, ouvisse seus estertores e a batida final do seu coração.

Ao meu lado, a amiga que estava comigo e que um dia amei, disse: qualé, ele só está conferindo as promoções do supermercado. De fato, só então percebi que detrás da minha capa de Homem Invisível, a parede do supermercado Sé que então existia ali na Barros, quase esquina com Barão de Tatuí, estava coberta de cartazes de produtos em promoção, e Piva, provavelmente em dia de compras (a sacola na mão sugeria isso), caçava o feijão mais barato do bairro.

Após a desistência dele de pechinchar o almoço, eu o segui até a entrada do edifício onde morava na rua Fortunato. Agora, como sabia o endereço do poeta que eu tanto admirava, poderia voltar no dia seguinte e deixar um exemplar do meu livro de estreia, Eletroencefalodrama, coisa que realmente fiz (como não localizei o porteiro, apenas joguei o envelope na entrada do prédio; nunca soube se o livro chegou às mãos do Piva).

Continuei a exercitar a dica de invisibilidade do Burroughs nas ruas de Santa Cecília por algum tempo, até mudar de emprego e passar a não ser visto em outro bairro, para onde acabei mudando. Mas antes, acompanhei Piva pelas calçadas e esquinas, sempre mantendo de longe uma conversa silenciosa com ele, igual à que Torquato Neto mantinha com Drummond ao segui-lo pela avenida Rio Branco, quando o poeta mais velho ia e vinha da repartição onde trabalhava e era seguido silenciosamente pelo jovem vampiro à espreita.

Meu papo com Piva tinha começado quando encontrei um exemplar meio desbeiçado da Antologia Poética na Livraria Capitu, que ficava na rua Jurupari, Tijuca, na cidade onde fui mais invisível do que em qualquer outra, além de bastante infeliz, o Rio de Janeiro. Como ainda indica a anotação na folha de rosto do livro, essa conversa começou no dia quatro de abril de 1988.

Sempre na minha, vi Piva ler poemas e fazer cânticos xamânicos na Funarte da Alameda Glete, antes de o lugar ser transformado num bunker nazista, vi Piva assinar meus exemplares da segunda edição de Paranóia no Instituto do Banqueiro Legalzinho, que ficava na rua Piauí e não na atual sede da Paulista, do Ciclones não me lembro onde, e de Um estrangeiro na legião, naquele cinema da rua Augusta.

Minha despedida do Piva aconteceu na Lanchonete Hobby, na rua Cardoso de Almeida. Eu comia meu hambúrguer de praxe, quando Piva acompanhado do Roberto Bicelli, entraram, comeram e não tinham como pagar (o Hobby só aceita dinheiro ou cheque, como outros estabelecimentos severos e dignos de confiança que frequentei, quando isso era possível). Foi então que quebrei o silêncio, me oferecendo para pagar o lanche do poeta, retribuição ridiculamente barata perto daquilo que seus livros me deram, mais barata que feijão na promoção, o que ele aceitou satisfeito.

Obrigado, ele disse. Muito obrigado, eu disse. E ficamos assim, e de silenciosa a conversa num instante passou a ruidosa.

Sempre agradeço ao ensinamento de invisibilidade do Burroughs, pois através dele eu pude registrar na memória uma cidade que não existe mais, 
uma São Paulo cuja destruição foi vaticinada por
Roberto Piva, "eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci."

SP, 21 de maio de 2020 


foto: Rafael Roncato

Ilustração: Ian Uviedo




Joca Reiners Terron (1968) é escritor. Publicou Noite dentro da noite (romance, 2017), O sonâmbulo canta no topo do edifício em chamas (poemas, 2018) e A morte e o meteoro (romance, 2019), entre outros livros. Vive em Santa Cecília. 

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