A coisa preta ou Um rito de passagem

Edvaldo Ramos Leite

Antes eu não era homem de verdade. Mas agora eu sou. E acho que não tenho mais aquela merda de vida que meu pai dizia que eu tinha. Ele tinha parado de me dar as coisas, disse que só ia pagar minha terapia. Pra eu virar homem. E com isso eu devia resolver minha vida, me segurar num trabalho, essas coisas. Já tinha uns três meses que eu dirigia de Petrópolis até Itaipava pra fechar fornecimentos de biscoitos. Demorou pra conseguir começar a dirigir, manter um emprego sem ter essas crises. Nunca demorei muito em trabalho nenhum porque em algum momento eu acabava desmaiando, vomitando ou me cagando de tanta ansiedade. E, às vezes, tudo ao mesmo tempo. Mas o pior são os tremores. Porque se eu me cago ou vomito ou desmaio, isso vem de repente. Mas os tremores, não. Se eu passo por uma situação difícil, eles começam bem antes do pior e vão me avisando que algo ruim vai acontecer. E me desespero, faço besteira. Um cara com quase trinta que nunca conseguiu nada. Nunca virou homem de verdade. Um fardo pro pai. E isso nunca foi questão de dinheiro pra ele. Mas tava dando certo o emprego novo. Já tava começando a achar que íamos poder falar de homem pra homem, sabe, com dignidade. Até que apareceu a coisa preta. Não era noite ainda quando eu dirigia pela Juscelino Kubitschek. Vi ela cavucando um desses túmulozinhos de beira de estrada. Parecia gente e parecia bicho, jogando terra pra cima, sozinha no meio do nada. Quando fui me aproximando, comecei a tremer. Meu Deus, eu não podia passar por isso de novo. Não agora. Dizer pro meu pai que surtei, que perdi outro emprego. Tremi tanto que soltei a embreagem, o carro morreu sem que eu conseguisse fazer funcionar de novo. Parou muito à frente por causa da inércia, mas eu não pensava mais direito. Só tentava respirar como o terapeuta mandava, pra não desmaiar, mas meu corpo não me obedecia. Foi quando olhei pelo retrovisor e vi a coisa correndo. Olhei pra trás, sem acreditar, mas ela vinha mesmo na minha direção. A coisa que meu pai falava. Era real. Não era homem ou mulher, não tinha como saber, só vi que era toda preta. A roupa, a cara, tudo. Ela corria na direção do carro, gritando com aquela voz rasgada, horrível, aquele cabelo desgrenhado como de um leão. Sacolejando os braços abertos, parecia mais desespero. Mas era pra me agarrar e levar pro inferno. Como meu pai dizia. "Fica aí sem dar um pio. Se gritar, a coisa preta vai sair daquele canto com os olhos esbugalhados e vai te levar pro inferno. Vai aprender a ser homem. Quero viadinho na família, não". Aí ele trancava a porta da dispensa e eu ficava sozinho. No escuro. Eu e a coisa preta me esperando chorar. Mas eu segurava o choro. Fiz isso a infância toda. Até que o choro virou essa doença que me fez cagar, vomitar, tremer e nunca terminar nada na vida. E lá vinha a coisa preta. O terapeuta disse que não era real, mas tava ali. Tinha mesmo os olhos esbugalhados. E corria pra mim, querendo algo, implorando com aqueles olhos, aqueles gritos que não paravam. Não sei como, mas fiz o carro pegar. A coisa chegou bem perto, a ponto de tocar a parte traseira. Parecia gente, mas eu não me virei de novo pra olhar, só acelerei. Os gritos foram ficando longe até ela, ou ele, sei lá, desaparecer no reflexo. Aí vomitei no banco do passageiro e percebi que já estava com as calças sujas e tava chorando e tremendo como um viadinho. Só ouvia a voz do meu pai dizendo que eu ia crescer sem aprender a ser homem. Eu não podia abandonar aquele trabalho porque me caguei nas calças. Eu tinha que enfrentar pelo menos uma vez. Parei e fiquei olhando pelo retrovisor, respirando fundo pra não apagar e sentindo o cheiro da minha própria merda dentro do carro da empresa. Fiz o retorno cantando pneu e acelerei de volta. Tremia tanto que mal segurava o volante direito. O carro avançou em zigue-zague pela pista até avistar a coisa acocorada de novo, cavucando o túmulo. Quando ela percebeu o carro, voltou pro asfalto com aqueles braços sacolejando no ar, os olhos de fogo, o cabelo de leão. E a cara preta. Mirei nela, fechei os olhos e botei pra cima. Mas o tremor me fez errar. Senti a pancada no lado do carro e parei. Não foi em cheio. Vi pelo retrovisor que tava caída, ainda se mexendo e agora gritando mais alto. Tão alto que parecia dentro do carro comigo. Botei as mãos nos ouvidos, mas os gritos estavam dentro da minha cabeça. Dizendo que ia me pegar e me arrastar pro inferno, que é pra onde os viadinhos vão. "O inferno pra onde tu vai é pior do que esse escuro aí. Continua botando mãozinha na cintura, pra tu ver. O bicho vai vir." Os gritos da coisa no chão, a voz do meu pai, a pancada da porta da dispensa fechando. Tudo misturado. Eu gritei, soquei o volante, todo melado de bosta. Era demais pra mim. Nunca mais a coisa ia me assustar. Eu não ia ser mais um inútil na vida. Dei ré. De olhos fechados, acelerei na contramão o mais que pude e senti o carro dar um pulo violento. Ouvi ossos quebrando, algo estourando entre carne e líquidos. O solavanco me jogou pro acostamento. Quando a nuvem de poeira baixou, vi uma massa preta e vermelha no asfalto. Se mexia devagar ainda, mas não sei se o movimento vinha de um braço ou perna. Em zigue-zague, tremendo e chorando, fugi dali na esperança de ter acabado com o bicho. Pela primeira vez eu enfrentei a coisa. Fui homem. Foi duro ter que limpar o carro todo sujo por dentro e por fora. Mas eu limpei tudo e paguei os amassados que ficaram, na certeza de poder voltar pro trabalho na segunda e saber que não tinha mais nada que me fizesse entrar em pânico porque matei a coisa que me assombrou a vida toda. Vi os noticiários policiais comentando sobre um rapaz negro que morreu atropelado numa estrada do distrito. Eu nem gosto desses jornais, nem dei muita atenção. Mas vi que o rapaz tinha transtornos mentais. Estava há três dias sem os remédios e, sem ter o dinheiro da passagem, foi a pé para o posto de saúde mais próximo, que ficava a uns oito quilômetros da casa isolada em que morava com a mãe idosa. Ela também era doente da cabeça. Eu tinha mais em que pensar, acho que todo mundo também. Três dias depois ninguém mais falava. Não podia se tratar da mesma coisa. O que eu matei não era gente mesmo. Aos poucos fui me dando melhor com meu pai. Afinal, ele viu que eu estava conseguindo manter o emprego, não tinha mais "chilique de bicha". Eu nem preciso mais fazer terapia. Nem tomar remédio. Me tornei um homem de verdade.

EDVALDO RAMOS LEITE editou as zines Paranoia e Plano 9 divagando sobre terror, pessoas e cidades. Escreveu contos e crônicas no blog Domo Solar. Fez o Curso Intensivo de Escrita Literária do projeto Pintura das Palavras e participou das antologias A Chama Depende do Combustível e De Todas As Maneiras Que Há De Amar. Estudou Enfermagem, Cinema e trabalha com trens. Realiza experimentos com vídeo e poesia no canal Biziborne e atua no podcast Narrativas Oníricas.

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