A diversidade paulistana faz festa na Vila Madalena

Matthew Shirts

No início de dois mil e vinte, recebi um convite para participar de um debate sobre "diversidade" em São Paulo. Fazia parte das comemorações extra-oficiais do aniversário da capital, no dia vinte e cinco de janeiro. Veio por email do escritor pernambucano Marcelino Freire que, tal como eu, adotou há tempos a nossa cidade.

O debate aconteceria, explicou Marcelino por escrito, no hoje lendário bar e livraria Mercearia São Pedro, na Vila Madalena, que frequento desde a década de oitenta, quando me mudei da Califórnia para cá. Na época não havia ali na Mercearia nem mesa, e sua principal atividade era a venda de arroz, batatas, papel higiênico cor-de-rosa e diabo verde. Eram outros tempos. A Mercearia era mercearia mesmo. Foi no fim da ditadura militar e não existiam ainda bares, muito menos restaurantes, nem trânsito, na Vila Madalena, apenas botecos tradicionais e uma ou outra venda como a do Seu Pedro. Quando a gente precisava dar um telefonema, comprava fichas no balcão para ligar do orelhão.

No dia do evento, ao me ver no palco diante de um bar cheio, duzentas pessoas talvez (antes da pandemia), ao lado de Laerte, cartunista genial, genial, e velha amiga transgênera, me emocionei. O encontro concentrava muito do que mais me atrai em São Paulo: gente diversa, de todo tipo, voltada para uma convivência entre arte e poesia. Com um pequeno empurrão dos organizadores, o multiculturalismo combina bem com a velha e boa "geleia geral brasileira". Foi o que me passou pela cabeça na hora, ao menos.

Enquanto eu disfarçava os arrepios ali no palco, Deusa Poetisa, vencedora de concursos de poesia Slam e militante de movimentos negro e feminista em São Paulo, abria o acontecimento com a declamação de uma obra que me lembrava o hip-hop americano. Na primeira fileira estava o Marcos Benuthe, um dos proprietários do bar e quem resolvera insistir na diversidade como tema, imagino. Quando se diz diversidade ali na Mercearia, significa juntar todo tipo de identidade de gênero, étnica e de classe social, todo tipo de gente, para ver no que dá. Ao lado do Marcos estavam os escritores Marcelino Freire, o co-organizador, e Xico Sá, escritor e comentarista de televisão, um dos mais célebres e queridos frequentadores do bar. Foi ele quem trouxe para a Mercearia o lendário e saudoso Dr. Sócrates, filósofo do nosso futebol. Xico chegou a receber sua correspondência no endereço da Mercearia. É este tipo de lugar, mitológico. Não faz muito tempo, o bar recebeu da Secretaria de Cultura do Município o reconhecimento oficial deste status no formato de uma placa, que o declara um lugar especial na Memória Paulistana. Está lá na parede. A Mercearia foi até tombada.

Enquanto a Deusa Poetisa demandava justiça racial, a calçada se lotou de gente. Havia no palco artistas e intelectuais de renome, como Ignácio de Loyola Brandão, cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, e a Renata Simões, da TV Cultura. Amo este clima de "São Paulo é uma festa", citação de Hemingway, no qual o bar nosso se torna um lugar para a troca de ideias, de quem gosta delas e vive pela arte. Foi esta vida intelectual e social forte e divertida que me trouxe para cá na década de 1980.

Quem contou a história mais interessante ali do palco foi a jornalista Adriana Couto. Você a conhece. Ela apresenta o programa Metrópolis na TV Cultura. É uma celebridade. Linda e negra, tem hoje por volta de quarenta e cinco anos de idade. Foi criada, conta, no bairro de Itaquera, quando este ainda pedia em letra de escola de samba uma estação de metrô, um shopping, lanchonete do McDonald's e um estádio para o Corinthians. (Para quem não sabe, o bairro ostenta hoje os quatro itens e foi palco de nada mais nada menos do que a abertura da Copa do Mundo de dois mil e catorze).

Adriana fazia colégio público em Itaquera e diz que era estudiosa. Devia ser mesmo, porque conseguiu passar no vestibular de jornalismo da PUC de São Paulo, quando este era um dos mais concorridos do país. No colégio em Itaquera, ser estudiosa, diz Adriana, do palco, exigia sobretudo uma dedicação integral à tarefa de não fumar maconha. Parece piada e todo mundo no bar da Vila Madalena ri. Mas não era apenas divertida a observação. Adriana explica que quem fumasse a erva na periferia daquela época acabava preso. E quem era preso comprometia para sempre seu futuro. Dançava, se ferrava, como se dizia. Daí a importância primordial para quem buscava uma vida profissional de se evitar a maconha a qualquer custo.

Quando chega à PUC, na década de noventa, no bairro super-classe-média de Perdizes na Zona Oeste, fora de sua zona de conforto, o que mais chama a atenção de Adriana é a prática, comum, de se fumar maconha nas redondezas sem a intervenção da polícia. Ninguém ia preso. Levou um susto, conta. Ou seja, a maconha era proibida mesmo apenas para os pobres.

Ainda mais interessante para mim no seu depoimento foi a comparação que fez entre os artistas e intelectuais da periferia do seu tempo e os de hoje. Ela saiu de Itaquera para não voltar mais, afirma. Enquanto os escritores e cantores e artistas de hoje, segundo Adriana, transitam livremente entre "a quebrada" e o centro expandido da cidade. Vão e voltam. Os que são de lá se alimentam da cultura da periferia. A quebrada é roots e é dela que os artistas retiram sua força. Ela diz estimar esta qualidade nas gerações mais jovens. Chegou a utilizar a palavra "inveja", se a memória não me falha, que segundo o escritor Luís Fernando Veríssimo nada mais é do que a forma mais alta da admiração.

O relato da Adriana me fascinou ali no palco. Capta uma das melhores transformações de São Paulo nas últimas décadas, creio: o surgimento de uma diversidade geográfica, do orgulho de ser da quebrada. Cunharam até esta palavra - quebrada - maravilhosa para valorizar o que se chamava, outrora, de periferia. Hoje, a quebrada está presente na comédia stand-up, nas batalhas de poesia Slam, no grafitti, na música, na culinária, e também nas lutas pelo multiculturalismo. Há uma busca pela palavra, por inclusão e reconhecimento que não prescinde do lugar de origem nem da identidade sexual ou racial. A comida gourmet da Zona Norte de São Paulo é nordestina, para dar um exemplo. E vai gente do mundo inteiro para experimentá-la. Há algo de novo nisso. Gilberto Gil previu esta força toda em oitenta e três quando lançou Punk da Periferia com o refrão "sou da Freguesia do Ó". Há muito da cultura hip-hop também. O hip-hop valorizou as periferias das grandes cidades do mundo e aqui não foi diferente. São Paulo se deu bem com ele.

Isto tudo ficou claro para mim durante o evento da Mercearia no dia vinte e cinco de janeiro. Ao chamar a diversidade social, racial, de gênero e geográfica para se reunir na hoje burguesa Vila Madalena, deu-se uma injeção de ânimo na cultura do bairro, onde moro há décadas, devo dizer. Rezo para toda esta diversidade sobreviver firme e forte e animada à pandemia de covid-19. A quebrada tem muito para mostrar ainda. Disso tenho certeza.


* crônica publicada originalmente na revista Inside Chapel.


Matthew Shirts veio para o Brasil pela primeira vez em 1976, da Califórnia, onde foi criado, através de um intercâmbio escolar. Voltou muitas vezes até fixar residência em São Paulo em 1984, ano em que conheceu a Mercearia São Pedro, levado pelo professor Antônio Pedro Tota. Vive em São Paulo, próximo da Mercearia, até hoje. Trabalha como jornalista e escritor. Atualmente se dedica ao site fervura.net

Foto: Cris Veit

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