A minha natureza

Lorena Sodré

Se venta um pouco mais forte, enverga, mas volta plena, por isso gosto de observá-la. Quando acordo com tempo para admirá-la pela fresta do basculante, ela está do mesmo jeito, de pé, acompanhando a vida em frames. Enquanto meço esse pó de café, deve estar acontecendo uma vida urbana ao contrário no resquício de mata atlântica onde ela mora, formigas em fila indiana carregando destroços, casulos cansados de crescer sem o mínimo de conforto e alguma cigarra macho desafinada esperando uma nova oportunidade de procriar.

O que eu tenho certeza é que anoitece, cai a temperatura, eu fecho as janelas assim que ela se esconde no breu, é o nosso sinal, pois muitos ali fogem do frio pra cá, atrás do sol nas lâmpadas. Eu tenho alergia à picada daqueles insetos, não posso ficar com marcas no corpo, me agasalho toda porque gosto desta segunda pele de proteção, mas o meu corpo não está acostumado. Lá fora a vida é muito castigada, nesta área de resistência no meio do deserto de Bangu, penso na sede dos meses sem chuva, na paciência vulnerável daquele tronco podado, e a resposta é sempre a mesma, esperar a lei da impermanência dar sinal.

No entanto eu nunca gostei de esperar na fila, cuido do meu cabelo e da minha maquiagem por causa disso. Olhar o desenvolvimento dela, mesmo ali parada, me mostra um caminho de aceitação, vivo querendo me dedicar mais ao atendimento das crianças lá do barracão e não consigo tempo, pois preciso do dinheiro das apresentações, não quero depender de ninguém, como fiz com o Dodô. Ainda choro ouvindo nosso enredo, essa mania de sentir dor para me sentir viva, foi a terapeuta do centro comunitário que me alertou sobre isso na sessão de terça. Apesar de reverenciar a sua plenitude imóvel, me questiono se a paz que ela me transmite possa ser a inércia de quem está preso às raízes mais profundas de hereditariedade, ou vai ver é preguiça de movimentar o próprio peso. Tanto perrengue para me formar fisioterapeuta, mas continuo sobrevivendo do samba, enquanto as plumas caem numa temporada de outono estendida.

Mas quem vai saber se a Dama-da-noite que me inspira sente inveja do vento soprando leve em sua nuca e não enxerga a graça no seu black vistoso, já que é fruto do mesmo ciclo repetitivo da natureza, ou se passa mal por dentro de tantas cócegas e de nojo, sentindo subir-lhe entre os sulcos as tanajuras em festa sem poder dar nem uns petelecos. Vai que ela prefere os tons neons para suas flores brancas que só as águas-vivas sabem produzir, eu sempre gostei dos swarovski mas o preço é muito alto.

A aceitar a queda das folhas, vejo que é sempre a última, não é de toda passividade, consegue segurar poucas no topo, teimosa feito um negacionista calvo. Deve surgir daí a força de vontade, em meio à tempestade ela samba e, enquanto todo mundo está de ressaca, limpando os bueiros no dia seguinte, ela surge folha-acesa, sem arredar pé nem denunciar o sofrimento no salto fino. Fico em dúvida se o silêncio do chiado dela é força ou fraqueza, engulo a pressão com mais uma cápsula e saio para mais um show verde e amarelo na Estudantina.

Ter chegado de madrugada não me dá a vantagem de acordar tarde no dia seguinte, movimentar o corpo num transpassar duplo e recíproco da vida alivia minha ansiedade e a culpa pelo tabagismo, eu tento avisá-la sobre essa possibilidade de fuga mental de quem sente no físico a idade quando sambo Sonhar não custa nada de um cômodo para o outro, acendendo e apagando os cigarros. Tem dias que me disfarço de vaga-lume, acreditando estabelecer alguma comunicação, desenho caminhos de luz com a ponta laranja, rente ao vidro da janela do meu quarto, escrevo coisas sobre escolher as próprias prisões, sobre o tempo de primeira passista na avenida, de quando arrepiava com os aplausos e voltava para casa, farsante, sabendo que era tudo strass.

Eu te devo sinceridade, por todas as manhãs que você, altiva, me impulsiona a levantar os halteres ao lado da cama, moldar o corpo que eu exibo nas festas da Mocidade e nas noites de insônia após a adrenalina dos ensaios, eu sei, você também não escolheu, mas não tem outro caminho diferente disso que não seja a morte. Serra elétrica, praga, seca, há vários destinos, mas todos em direção ao mesmo lugar sem seiva. São poucas as semanas para gozar a festa que pulsa no meu sangue, e tantas outras tendo que paralisar a felicidade fora de época com muito botox para garantir meu lugar fixo, tenho a mesma sina enraizada que a sua.

A escritora LORENA SODRÉ tem 38 anos, é carioca, mulher preta, formada em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), professora do município fluminense há dez anos, mãe da Isabela e se reconhece como um exemplo de proporcionalidade feminina e negra nos espaços de educação e literatura. Aluna do Curso Livre de Preparação de Escritores (CLIPE), da Casa das Rosas, estreia na literatura com Saudade Manda Lembrança (2021), publicado pela Editora Expressividade.

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