Valéria Barcellos, transradioativa essencial

entrevista exclusiva da artista Valéria Barcellos, por Ian Uviedo

foto: Silas Lima

1. Para começar, vamos falar um pouco do seu livro Transradiotiva- você me conhece porque tem medo ou tem medo porque me conhece? (Monocó, 2020). Depois de uma carreira a cada passo mais brilhante nos palcos, sobretudo como intérprete, você decide se lançar como escritora. Pode nos contar um pouco sobre como foi a formulação do livro e de onde veio a vontade de realizá-lo?

R - Bom, na verdade eu já escrevo há muito tempo, escrevo há muitos anos. O período que estive reclusa em tratamento de câncer me fez organizar melhor os pensamentos. Eu estava no looping de viagens e shows que não me permitia nem cuidar da minha saúde por completo nem prestar atenção na minha carreira ou nos meus projetos pessoais por completo. Foi então que com o tratamento eu tive de parar, deixar a poeira assentar, organizar meus pensamentos, e daí surgiu a vontade e o convite da editora para o lançamento desse livro. O livro também criou corpo depois que, na minha vontade de contar para as pessoas sobre o processo do câncer, as mudanças e as vontades, eu escrevi um texto incrível que postei no facebook e teve pouquíssima interação. Aquilo me incomodou. Eu queria retorno, respostas, eco aos meus dizeres. Foi quando eu resolvi ler esse texto num vídeo: já que as pessoas não liam, resolvi eu mesma ler para as pessoas. Deu muito certo! Em dois ou três dias o vídeo teve mais de seiscentas mil visualizações. Foi daí que surgiu a ideia de fazer o #ValériaLêParaMim, um projeto criado pelos leitores e pelos espectadores dos vídeos. Daí para o livro foi um passo.

2. Atualmente, como você enxerga a relação entre música e literatura no seu trabalho? Uma linguagem se apoia na outra, acrescentando, ou são dois departamentos absolutamente diversos na sua criação?

R - Enxergo uma certa ligação entre ambas. Eu já tinha começado a colocar textos, leituras de textos nas minhas apresentações em shows. Uma das minhas primeiras inserções de textos em shows (textos meus, claro, pois já lia textos de outras pessoas) foi na Balada Literária há uns três anos, quando eu, atrevida, li um texto que fiz minutos antes de entrar no palco, para Alice Ruiz e Itamar Assumpção. Escrevi o texto no camarim da Casa de Francisca, ali de pronto, um texto que veio verborrágico. Imediatamente percebi que a ligação que havia sido estabelecida não teria mais como ser diferente. Hoje sim acredito que uma linguagem se apoia na outra, que se acrescentam, que se completam. Linguagens diferentes, amor igual.

3. Valéria, todos que já tiveram a oportunidade de ir ao seu show ficaram impressionados com o que viram. Você ganha o público pelo carisma, a voz poderosíssima, as tiradas espirituosas, tudo sempre alinhado com suas convicções políticas, e em muitos momentos parece que quem está cantando ali é uma entidade. Como você tem lidado com esse período em que os palcos estão temporariamente interditados?

R - [risos] Achei essa interpretação do meu show a coisa mais linda que eu vi este ano. Bom, se sou essa entidade que tu estás falando, não devo me preocupar com presença física; afinal, sendo essa entidade, nem presença física sou, não é?
A verdade é que sinto muita falta do calor dos palcos, dos aplausos ali perto dos ouvidos. Mas sem demagogia, e falando seriamente agora, sou uma mulher trans que já experimenta do distanciamento social desde que me entendo como uma mulher trans, logo, vejo de longe e confesso que até saboreio que todo mundo agora experimente aquilo que tenho desde que me entendo por uma mulher trans: o distanciamento social. Não poder abraçar em público, ou não poder tocar as outras pessoas em público, não poder beijar, desejar, acariciar, ou simplesmente estar ali com outras como eu. Nesse ponto a pandemia democratizou atitudes, ações e permanências, em certos lugares o ser humano está aprendendo a lidar com o tempo, está aprendendo na pele uma lição que diz: você não é dono do seu próprio tempo, eu aqui é que sou, espere para quando eu decidir ser, o melhor momento para você.

4. Para terminar, pode indicar um disco e um livro para os nossos leitores?

R - Indicar um livro no momento é difícil porque é lógico que vou indicar o meu Transradioativa: você me conhece porque tem medo ou tem medo porque me conhece? [risos]. Mas também indicarei um livro chamado: Antologia Trans, 30 poetas Trans, Travestis e Não Binários (Invisíveis Produções, 2018). Além desse, gosto de Toureando o Diabo, de Clara Averbuck e Eva Uviedo (2015), e Contos Transantroplógicos (Editora Taverna, 2018), de Atena Beauvoir Roveda. Eu sei que você falou para dizer só um, mas estou tão sedenta de literatura que não consegui fazer isso.
Disco? Gosto muito do novo trabalho de Natania Borges e Azenza, o disco Liberdade. É um trabalho incrível no disco. Todo visual vale muito a pena conferir. Traz negritude, questões trans e muita ancestralidade. Recomendo! 


Valéria Barcellos é multiartista. Cantora, atriz, dj, performer, escritora, compositora, aspirante a fotógrafa e artevista plástica, ativista e milituda. Ela é a vontade humana de dar vez e voz às mulheres pretas e trans. Ela é negra e trans, uma mulher que quer tudo ao mesmo tempo. Uma mulher que é tudo que quiser. Em 2020, publicou o livro Transradioativa: você me conhece porque tem medo ou tem medo porque me conhece? Acompanhe em https://www.facebook.com/transradiotiva/.

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