Enxota-diabos

Semayat Oliveira

O céu escorregou na noite mais cedo que o normal. A lua, fingindo cegueira, ficou atrás das nuvens. Foram anos de combinamento. Chás cafés águas com hortelã desceram goela abaixo segredando o hoje. Lena não sabia quem vinha, mas esperava com uma vela acesa no pé da escadaria. Arruda e sossego nas mãos, não ria nem franzia a testa.

--- Trouxeram as coisas?

Juntas, subiram a ladeira entre os barracos invisíveis cor de madeira laranja tijolinho. Eram muitas pernas juntas, quietas feito lanças, algumas descalças e bem pouquinhas na chineleira. Sacolas sacolas sacolas. Quanto mais alto ficava, menos casa abrigo tecidos equilibrados em caixa de papelão. Tudo era cheiro de feijão no fogo, som de água molhando a farinha. Angu, um luxo. Lááááá de cima, ó só, do tanto de luzes saídas pelas janelinhas e becos encruzilhados, prato vazio sobrava.

Aquele chão era tudo o se que tinha. A terra foi minguando numa tacada só de tempos pra cá. Sem documento ou assinatura, só comida plantada e herança de sangue, tomaram. Pá pá pá. Tomaram. Parecia coisa do século quinze dezesseis dezessete, onde nem América Latina era. Os homens saíram adoidado pegando pra si o de todo mundo. Chamando de seu, diaxo!, o que antes servia tanta gente. E aí...hum! As rebeldes usavam saia. Queimadas, línguas cortadas apedrejadas, mortas mortas mortas. Mas feitiço bom dança no oxigênio das gerações e canta nos úteros magos.

--- A benção.

'Deus te abençoe', Lena respondeu. Quando ouviu que prenderam Elê, a mais velha só inclinou os ombros pra frente e sangrou mais um chumaço de ervas no facão. 'Gente má tem breque?', perguntou, mostrando cansaço do cheiro de medo. O olhão arregalado de uma grudou nos dela. 'Prestenção: o tempo que a gente nasceu é esgoto sem tampa em dia de sol', disse, como se esperasse a morte com uma gargalhada. 'Quase ninguém vai viver', sorriu. 'E aqui ninguém é leão dormindo em mata escura, entenderam?'.

A vela tremelicou. Gente demais que não se vê observava e cuidava do lado de fora de dentro por cima. Pegue ali açúcar peixe leite coco balde d'água canela azeite dendê. Passos e mais passos aumentavam ao redor. Chegaram mais mulheres. A cozinha bailava no tanto de pés. Dava pra ouvir em sincronia o crec crec crec dos mato ficando menor, picadinhos. Uma sabença de como juntar os verdinhos, cada qual com seu jeito de incurar a morte.

Perdão? Não querem. E nem queriam as de muito antes, que escaparam da jaula fogueira saltaram no abismo. Saga maga abençoadeira, tudo forma de mulher capaz de enfrentar o seco do mundo, dinheiro ganância maldade. Superioridade. De hoje, tu vê, mulheres perdendo seiva de vida à toa, quilombo aldeia floresta morrendo.

"E ainda dizem que o mal somos nós", Lena disse pra uma das mulheres, pertinho da cara, pra depois acarinhar o rosto. A mais nova percebeu o molhar dos olhos, a tremedeira nas mãos, deu de sentir a tristeza, mas não disse nada.

Fileiras e fileiras de vidrinhos retangulares na mesa, assim, sem tampa. Uma veio com o caldo, entornado o segredo em cada um. Outra tampou. Mais uma passou colhendo, dividindo em sacolas. As moça estavam enfileiradas já.

A casa virou um amontoado de riso sem dentes, os lábios esticados, as mãos dadas uma apertando a daotra. Teve quem chorasse, fechasse os olhos, quem até se despediu pra sempre. As mistura balangavam nas sacolas. Caldo quando entorna não avisa, queima.

--- Cêis já sabem o caminho, cada uma tem uma casa pra atuá.

O sol foi entrando pelas frestinhas da madeira, pela janela. Junto com a luz, passarinhos galinhas um quá quá quá de pato. Aí deu pra ver um bando de fotos grudadas na parede, rostos nomes endereços direções. Relógio sem pressa, elas se olharam alongaaaado. "Bom trabalho pra cada uma", desejou de verdade. "E, viu... não temam a fogueira". *



*texto publicado originalmente na revista Lavoura, em 2020 


Foto: Zion Malik 

Semayat Oliveira é jornalista formada pela Universidade Metodista de São Paulo. 

Cofundadora do coletivo jornalístico Nós, mulheres da periferia, ativo desde 2014, escrever sobre gênero, classe, raça e território se tornou uma paixão jornalística e, recentemente, literária. 

 Outra paixão é fazer documentários: o coletivo lançou, em 2017, o curta 'Nós, Carolinas'. Desde então, Semayat foi pesquisadora e roteirista do documentário 'Quem te penteia' (2018) e diretora do média-metragem 'Na Disciplina: samba e cidadania' (2019).


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