Angélica Freitas, a alegria de criar, o brilho, o clarão e o colírio

Bate-papo descontraído e profundo da poeta Angélica Freitas com Ian Uviedo

foto: Dirk Skiba

1. Angélica, seu mais recente livro, o Canções de Atormentar (Cia. das Letras, 2020), nasceu de um projeto seu com a Juliana Perdigão, em que vocês trabalhavam poesia, performance e musicalidade. Pode nos contar um pouco como nasceu o projeto e como foi o processo de transformá-lo em livro?

Ei, Ian. O Canções junta um material que produzi de 2008 a 2020. Entre o poema mais antigo e o mais recente, lancei Um útero é do tamanho de um punho (2012). Eu tinha poemas que não entraram nele porque não encaixavam no tema, e que ficavam me olhando com aquela cara de "E aí, tu não vai nos publicar nunca?" quando abria os cadernos. E daí eu olhava pra eles e dizia "Talvez não, hein", e fechava os cadernos. Volta e meia alguém me perguntava quando ia sair o livro novo, e eu queria dizer: "2057", mas sou tão terrível que respondia: "Ah, estou revisando, tá quase". E depois queria me mudar pro Paraguai. Ainda quero, me mudar pro Paraguai está na minha bucket list. Eu conheci a Juliana em 2016, e um mês depois fui passar um tempo na Índia, numa residência artística. Mandava áudios pra Juliana, porque com o fuso de 7 horas de diferença e com os horários peculiares dela e os meus a gente quase nunca se encontrava online. Ela chamava isso de "O Feitiço de Áquila" (é um filme dos anos 1980, dá uma googlada). Um dia, em Calcutá, voltando pro hotel, numa rua chamada Mirza Ghalib vi uma loja de instrumentos musicais. (Mirza Ghalib foi um poeta hindu, por falar nisso.) Enfim, naquela loja havia um violãozinho triangular, estilo "de viagem". Me apaixonei por ele, passei uma semana contando minhas rúpias e voltei lá. Alguns dias depois, no hotel, peguei o violão, fiquei sentada quietinha na beirada da cama. Fiz uma melodia nas últimas cordas, que lembrava aquela música do Caymmi "O mar quando quebra na praia..." Quando vi estava cantando "Quem vai pro mar terá medo/ que o seu navio se espatife num rochedo". Gravei, mandei pra Juliana. Nos dias seguintes, fui compondo mais poemas. Era só pegar o violão que a coisa acontecia. Oh, a alegria de criar. O brilho. O clarão. O colírio. Acho que não teria escrito nada daquilo se não tivesse o violãozinho triangular. Às vezes você precisa de outras ferramentas. O título Canções de Atormentar me veio nos primeiros dias da volta ao Brasil, quando estava tomando um café numa padaria da rua Antônia de Queiroz, onde a Ju morava, em SP. Canções de Atormentar. Estava viradaça, tentando desfazer o feitiço de Áquila. Mas a Juliana acordava ao meio-dia e morava numa quitinete. Então eu não tinha o que fazer e ia pra padaria. Daí nesse dia de profundo fulgor eu peguei o caderno e acrescentei um poema, pensando nas sereias e no Ulisses atado ao mastro, e em como poemas podem ser canções de atormentar pra quem os escreve e pra quem os lê. Os meus são. Atire o primeiro caderno em branco quem não se atormenta nem um pouquinho com os seus e os de outrem.

Em abril de 2017, o Joca Reiners Terron nos convidou para participar do Zapoeta, um evento de poesia e música que ele organizava. Topamos. O material estava praticamente pronto nessa altura, foram vários cafés na padaria. A Juliana me fez ensaiar 200 horas, e eu protestei dizendo que poeta não precisa ensaiar, que era melhor não, mas ela não comprou. Ensaiamos, apresentamos. Parece que foi um sucesso? Eu só sei que fiquei meio surtada, não sabia se tinha amado ou odiado fazer aquilo, era muita exposição pra mim, que sou tímida. Uma vez, depois de uma apresentação, passei 18 horas vomitando. A Ju disse que eu comi um sanduíche estragado. Tenho as minhas dúvidas, embora tenha jantado num pé sujo depois da "perf". Bem, com dúvidas ou não, fui escrevendo. Lembrei de uma coisa que minha mãe me falou certa vez: "Tá com medo? Vai com medo mesmo", e é um conselho muito versátil, que pode ser aplicado sobre fazer arte ou mesmo ir ao dentista. Em um ano tínhamos feito mais três séries (Crianças Kids, Coisas que Voam e Consumo), e as apresentamos em SP, Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em BH.

No final de 2019, depois de muito remanchar, sentei com meus cadernos e escolhi alguns poemas pra passar a limpo. Eu escrevo em cadernos, então tem esse segundo momento, de passar a limpo e ver como o poema fica na tela, na página. É mais fácil editar assim. O que está sobrando sai. Passar a limpo no computador e ler o poema em voz alta. Outra coisa que me ajuda é esquecer dos poemas por algum tempo. Ficar mexendo muito e muito cedo pode ser pior. Porque, na real, ou a coisa acontece ou não acontece. Para o Canções, escolhi aqueles poemas em que vi afinidade. Mas... se eu olhar pra uma gaveta de meias sem par, por tempo suficiente, vou acabar achando muita afinidade entre todas.

2. Seus poemas já foram musicados por artistas do calibre de Juliana Perdigão, Gustavo Galo e Vitor Ramil. Qual sua reação ao ver um texto seu transformado em letra? Ao escrever um verso, já te aconteceu de sentir que ali havia potencial para a musicalização, ou isso vêm depois?

Quando o Vitor me escreveu, em 2009, pra dizer que estava musicando uns poemas meus, foi demais, porque ele é um artista que admiro muito desde sempre. Quase não conseguia acreditar. Tive que pegar meu casaco e sair pra dar uma volta pra me acalmar e acreditar. Foi um dos pontos altos da vida de uma poeta pelotense. Depois ficamos amigos, pra mim o Vitor é como um irmão mais velho. Com essa parceria, fiquei mais atenta para o que cabe num verso cantado. Tenho total interesse em que meus poemas sejam cantados. Mas quando estou escrevendo, na maior parte das vezes não penso que alguém vai me ler ou transformar o poema numa música. É a glória quando alguém lê um poema teu e ouve música ali. Porque um poema deve também circular no ar, um poema é uma coisa que voa. E a música o transporta lindamente para as ondas sonoras. E pra completar, isto: a possibilidade mnemônica. Quantas letras de música sabemos de cor? Um poema que você sabe de cor fica armazenado no teu corpo. Ah, além dessas feras musicais que você mencionou, lembro da Fabiana Faleiros, do DimitriBR, do Vinicius Calderoni, do Vadik Barrón, um poeta e cantor da Bolívia, e de uma cantora colombiana que morava em Berlim e ouviu uma leitura minha em 2007... Deve ter mais gente. Fico muito feliz.

3. O desenvolvimento dessa relação entre poesia e musicalidade alterou seu processo de escrita?

Se eu pensar bem, essas incursões na performance e na música me fizeram prestar atenção numa coisa que já existia no que faço. Isso foi o mais importante pra mim. Música e poesia andam juntas. Eu toco violão desde pequena. Mas geralmente pego o violão mais pra inventar do que tocar um repertório alheio. (A música que mais gosto de tocar é The Needle and the Damage Done, do Neil Young.) Raramente toco violão em público. Toco guitarra nas performances, mas é por que a Juliana não consegue soprar um clarone e tocar guitarra ao mesmo tempo... Fora isso, tenho que dizer que tocar um instrumento musical, ou desenhar, ou pintar, ou fazer tricô, etc., podem alterar o teu processo de escrita. É uma coisa muito sábia dar vazão pra energia por outros meios.

4. Qual sua relação com as músicas que você gosta de escutar? São uma trilha sonora constante da vida ou são reservadas para momentos específicos?

Quando eu era mais nova fazia uma brincadeira de me perguntar: se tivesse que escolher entre só poder ouvir música ou só ler, pro resto da minha vida, o que seria? E nem tinha dúvida: ouvir música. Hoje me recuso a escolher uma coisa só. Desde que minha mãe me deu minha primeira vitrola, quando eu tinha oito anos, e um esplendoroso single do Ney Matogrosso que tinha Homem com H num dos lados, a música é parte constante da minha vida. Música me transporta, me faz viajar. E eu preciso desse movimento pra ter ideias. Mas a música me dá foco, também. Cria uma espécie de casulo. Respondo estas perguntas ouvindo Mozart. Ui ui ui. Literatura também me transporta, mas pode ser um problema, porque quando estou lendo, quero continuar lendo, e não viajando na maionese. Às vezes acontece de eu ficar 15 minutos de olho parado num parágrafo porque estou viajando numa coisa que li ou numa coisa que uma palavra evocou. Por exemplo, leio "abacaxi" e penso "Como será que está o Reinaldo Moraes?", daí penso que preciso responder uma mensagem do Fabrício Corsaletti, daí penso que não sei onde botei o meu exemplar de Vermelho e o Negro... Eu quero ficar quietinha lendo.

5. Para terminar, será que pode indicar um livro e um disco para os nossos leitores?

Claro.
Mugido, da Marília Floor Kosby (poemas)
Rocanrol del Arrabal, de La Tabaré Riverock Band.


Angélica Freitas nasceu em 1973, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Publicou Rilke shake, em 2007, um útero é do tamanho de um punho, em 2012 (Cosac Naify), e Canções de Atormentar, em 2020 (Cia. das Letras). Sua obra já foi traduzida na Argentina, na Espanha, no México, nos Estados Unidos, na Alemanha e na França. 

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