A peleja

Marta Neves

Difícil imaginar um cão com pelo no nariz. E a cachorra, esposa, filha, enteada, irmã (essas posições sociais não contam mais na hierarquia canina depois de certa idade) tinha que aparar os fios com uma tesourinha que em outros tempos ela gostava de mascar na parte do plástico, aquela salgada e que tem a temperatura de uma mão, mascável também. Não se ressinta da dificuldade dela. Cachorros abrem portas, destampam canetas, apertam botões de coisas, esfregam-se sexualmente em consolos inimagináveis, usam tesouras pequenas. As grandes não lhes acertam direito na garra. O velho ficava ali, estático, sentado com ar de mascote enquanto os cabelos desgraçados iam se desfazendo em tocos pequenos no assoalho. A posição era ruim pra cadela que se virava tentando acabar o serviço e o cachorro, pai, irmão, padrasto ou marido, pesava indolente numa curva sem apoio, que corpo velho é intumescido de autoridade mas inútil em facilidades.

O campeonato chegava às oitavas de final. A televisão logo adiante era um muco de imagens distorcidas e boas. Agradável ver o tal jogão num dia muito emocionante de peleja, mas era necessário assentar a camisa, dar aquela abaixada no peito diante da luta digna de final, mesmo nas oitavas, segundo os narradores animados, bonecos lindos, parecem a tia quando manda biscroks no ar. Eles falam bonito, todo jornalista tem um treino na voz pra melhorar o amor, é um amor de feltro verde que se levanta do campo aos pedaços, amor pra gente apanhar na boca sem gosto, mas a tia dá e a gente pega a finta.

arte: Camila Assad

A cachorra, esposa, mãe, cunhada, tia, preceptora, irmã, essas coisas, era obrigada agora a apanhar as bolas, atender aos arremessos, abocanhar as traves na transmissão, narrando pro velho as chances que o time teria, as ameaças e os cartões, o velho surdo, perdido já o ouvido de cachorro, ela exausta, se você ainda não reparou na estafa canina, ela é enorme. Há uma periferia nesse estresse, um pedaço de rua esburacado que não funciona para cobrar falta, tem em todo cachorro a tal pior imagem do mundo, não há razão maior para um cão dormir tanto como eles dormem sem fim que não seja o dia do atacante, o atacante anônimo que eu vi, eu vi na tv, ele tinha cabelo grande, caracol, ele levou uma canelada, correu, ele se arrastou um pouco, daí um salto e caiu espiralado de pescoço, caiu em caracol, torto, era meio bonito, eu vi na tv, repetiram o lance, quebrou a espinha várias vezes no replay, repetiram até ele morrer várias vezes. Então a cadela, irmã, esposa, filha ou prima (que nas oitavas isso de parentes não faz sentido) tinha que esquecer a sede, a vontade de vasilhas, aqueles sonhos que fazem a gente uivar na tara dos mosquitos e das verrugas das pessoas grandes, o eterno gozo de mascar um lençol, uma muxiba, pra dar uma lambida no seu velho que não escutava os lances, pedia entendimento de jogo, doía.

Cachorros curam. Se você não sabe, eles abrem janelas, furam recipientes entupidos de superbonder, guardam camisas na cozinha, acendem isqueiros. Daí a cachorra, velha, irmã, mãe, cuidadora, esposa, mulher, cadela mesmo (tanto faz o que seja quando se chega ali no ponto do meio pro final do segundo tempo), cansada, bom dizer feia, não só lambia, fazia a marcação do velho, seguia cada movimento dele, era juíz, anotava. Cachorros anotam datas, compromissos, fios elétricos agradáveis de engolir, anotam remédios que eles cheiram e não comem, mas comem também. E morrem. Só que o velho não.

Tem uma rodada que esses bichos fazem pra se deitarem no chão duro. Ela fez, a cadela. Ele também, o filho, irmão, amásio, pai, padrasto, ator (esses parentescos são insalubres, o assoalho está sujo), mas fez primeiro, o velho. É que nenhuma cadela se deita antes do cachorro, regra oficial do time, sem a qual ninguém chega ao engano do macio onde se dorme, agora mais perto ainda da tv e do futebol. Enfim, embalados pela equipe, o entrosamento, a camisa, a campanha, o é com você do locutor, começaram a pescar. A cachorra ensaiou ver umas coisas dentro do vermelho do olho, umas casas, esquinas, uma almôndega e um calo. Mas nem chegou ao cheiro do tumor humano que tanto queria lamber, quase começando o sonho, quando o velho solicitou mais reparo.

Cachorros muito velhos são cheios de caspas enormes, foram um dia suculentas embaixo do pelo, agora não se soltam mais, são desgraçadas de alcançar com o dente. Eles sabem disso e acham que ninguém mais deve saber e no movimento da ossatura que mudou com o tempo (os cães vão ficando quadrados com a idade), ameaçam morder, são tiranos com quem tenta auxiliar raspando-lhes a coceira quente com o cuspe curativo. Não era diferente com a filha, enteada, empregada, esposa, mãe. Acontece assim, ele resmunga, rosna, ela insiste na gosma bucal ali nas suas costas, ele quer e se assusta. Também não deixa que ela pegue a ração de cara no almoço, toma os melhores ossos e não consegue mastigar, não lembra mais em que perna deve avançar e qual será a preservada, qual lado do campo é este, tem uma placa na frente dos olhos. Estão bonitos assim opacos, parecem de um cachorro bom, difusos, dóceis, olho sem brilho é estranhamente mais agradável, tem uma coisa de pintura sobre veludo, uma coisa de banco de carro antigo coberto com chenile, uma beleza de placar sem empate. Mas é um olho de louco, uma naja espera ali atrás sem fair play.

Era pênalti e a filha, sobrinha, mulher, cadela mesmo, recepcionista ou enteada (não se sabe mais das conexões na hora de largar o corpo desses bichos no aterro sanitário quando acabam) tinha sido escoiceada pelo velho. Como não fosse jovem também, doeu-lhe razoável esse golpe do cara. Cachorros sentem todas as dores específicas e umas esparramadas, experimentam absurdos psíquicos, têm taras anônimas como nós (os gânglios e os órgãos fazem absurdos fora deles mesmos), mas não conseguem explicar. Nunca souberam as palavras de ouro dos poemas antigos, de forma que ganem ou apertam a cara debaixo da coxa e ficam. O que fazer nesse momento? Matar o velho, o filho, o irmão, o algoz, o bufo, o marido? Matar o pai? Que escoiceia enquanto morre mas não morre? O jogador morre, espiralado no lance, quebrou coluna em pleno campo, eu vi na tv, vi o replay, quebrou várias vezes, o velho não, o velho nunca. O que fazer? Pedir talvez ajuda a deus, esse cara de duas pernas que passa pra lá e pra cá segurando cabos de modem? Deus diz "vai deitar" e abre um latão.

Alguém, na distração divina, mudou o canal. Estranho como esses programas da national geografic são traumáticos, os caçadores são tão injustos e maus, as presas tão ignorantes, bambis felizes e pronto, caem em caracol na boca de um tigre ruim. É seca na savana, sei lá onde. O narrador diz: "na paisagem árida tudo que resta da vida agora é apenas a morte". Nenhum animal se compunge. Deus, aliás, se irrita e volta o canal. A dor da filha, cadela, mulher, irmã, enteada, funcionária de serviços gerais (o que for, relações assim não vão com o momento dessa falta não cobrada) fica estável e ela se enrola mais no próprio corpo. O velho se debate numa ruminação qualquer, desacordado. Risos de deus. É gol.


Marta Neves é artista plástica e escritora em eterno estado de treino. Faz parte do coletivo de arte Academia TransLiterária, que publicou coletânea de textos de integrantes e pessoas convidadas em 2019. Trabalha no cruzamento entre palavra e imagem há vários anos (seu projeto NÃO IDEIA, apresentado na 31ª Bienal de São Paulo, por exemplo, estrutura-se como microcontos). Bordados, faixas de rua, fotografias, performances, livros de imagens e palavras compõem seus processos e se espalham em mostras e eventos no Brasil e fora dele. Publica textos em redes sociais e periódicos, além de participar de saraus, a exemplo do Sarau da Diversidade na Balada Literária de 2020.


Camila Assad é caipira de Presidente Prudente (SP). Estudou Arquitetura e Urbanismo. Escreve, traduz, desenha e recorta porque acredita enfaticamente no "failbetter". É autora de Cumulonimbus, Eu não consigo parar de morrer e Desterro, obra contemplada pelo ProAC na categoria criação literária. Adora pesquisar e criar tudo que se relacione às cidades e sua dinâmica caótica.  

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