Labirinto

Marcela Lordy

De cima, um retângulo fechado. Espaço delimitado. Pequeno mundo confinado, fácil de limpar. No entanto, o pó amargo do café passado insiste em formar uma borra. Cada mancha contém outras marcando o tempo. 2020. Graduações de um período largo sem que ninguém tenha coragem de esfregar. Por baixo, o ralo em funcionamento deixa passar o mínimo, levando com esforço o cotidiano inerte de um homem que se contenta com pouco, para não se doar. Ao redor, a pilha de pratos disputa espaço com os talheres de plástico. Embalagens recicláveis aguardam a sua vez, catatônicas, intermináveis. Melhor seria se elas tomassem uma atitude, já que lhe falta ímpeto. Enquanto isso, o entorno exala uma avareza ácida. Vez ou outra, quando meus olhos deslizam até as esponjas imundas embaixo dos canos enferrujados, o silêncio é rompido por um coro mudo. Cristalizado. Seiscentos e oitenta trilhões de fungos e bactérias urram quase roucas. Podem matá-lo. De febre, diarreia, problemas pulmonares, além do risco iminente do vírus que coroa o planeta. Diante do horror, um misto de piedade e raiva pelo fato de ele ter se deixado levar, a si e a sua própria pia a este estado deplorável. O retrato de sua atual condição: a falta de perspectiva de um artista talentoso num país sem futuro. Resolvo intervir naquela vida toda. Como pode achar que não escolheu ser a ruína que se tornou, batendo a cabeça contra a parede? Os filhos da puta que cruzaram seu caminho não foi coincidência, querido. Nem as sabotagens, culpa do pai ou da mãe. Ninguém tem o privilégio da eterna vítima. De fato, você não calculou chegar aos quarenta sem país, sem carreira e com o coração cheio de ódio. Entretanto, a pia me diz que você chegou lá, bem agora. Se escolheu ou não, consciente ou não, responsável ou não, é preciso encontrar o cordão que liga os pontos. E com a paciência de um pescador, desatar os nós, em busca de uma saída para o mundo. O outro, seu espelho. Então arregaço as mangas e meto a mão naquela imundice para movimentar a energia da casa, ou melhor, de uma vida inteira. Quem sabe organizando por fora ajudo ele por dentro. A ideia é boa. Mas depois de semanas novos sinais escondem o inox impiedoso. E com o fim de dar um chacoalhão, desta vez tento tirar este homem da minha vida. Ele me deixa para trás de prontidão. Levo um choque. Não é fácil varrê-lo, como foi lavar a sua pia. Mil vezes a pia. Até hoje, o minotauro pandêmico em aflição me acompanha: numa espécie de telepatia diária, ainda pasma, mando o fio de luz e afeto que o conduz à minha mão.


Marcela Lordy é diretora, roteirista, ama literatura e já teve um sanduíche em sua homenagem na Mercearia São Pedro. Graduada em cinema na FAAP, estudou direção de atores na EICTV, em Cuba, e trabalhou com importantes cineastas do cinema brasileiro. Entre o cinema, a televisão e as artes visuais seus filmes 'Sonhos de Lulu' (2009), 'A Musa Impassível' (2010), 'Aluga-se', 'Ouvir o Rio: uma escultura sonora de Cildo Meireles' (2012) e 'Ser O Que Se É' (2018) foram exibidos e premiados em festivais e museus mundo afora. Em 2012, fundou a Cinematográfica Marcela, uma produtora independente, de caráter cultural, com a finalidade de co-produzir os filmes de sua autoria. Professora, júri e parte da comissão de seleção de diversos festivais e editais, este ano lança 'O Livro dos Prazeres', seu 1º longa-metragem de ficção. 

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