Maria Lemes

Tadeu Rodrigues

Morreu na esquina mais barulhenta da cidade
usando um pijama velho de flanela.

Não tinha poça de sangue perto. Se olhasse bem, dava pra ver o rosto inchado. Deve ter sido coração, disseram. Pode ter sido aneurisma, minha tia ficou com esse rosto. Infarto, roxinha desse jeito, é infarto.

Uma história de papel passado: Maria Lemes. Alguém leu no bordado do pijama. Chama a ambulância. Por quê? Já morreu. Chama a funerária! Sinal da cruz coreografado na expertise presunçosa de quem gosta de ver tragédia e dar vereditos. Tem parente? E eu vou lá saber? Tem cara de mãe. Mãe tem cara de quê? Tem cara de vó. Olha o pescoço, vai explodir.

A dois metros uma idosa desinteressada mexia no lixo e torrava sob o sol numa blusa de lã grossa e suja. Ignorante do movimento de pessoas circundando o corpo, pegava latinhas de modo automático e as colocava em um saco plástico preto grande.

Os curiosos mesclavam interessados no óbito, desinteressados, apressados, curiosos e esnobes. Como composição de uma tela a óleo da modernidade; cena que carregava o peso da rotina da disfunção social de um centro urbano imundo e caótico, a idosa tinha os cabelos brancos amarelados bem armados e embaraçados, estava descalça e trazia nos pés feridas antigas. Abaixo dos olhos, carregava olheiras fundas e escuras, fantasmagoricamente tristes.

Uma criança de mãos dadas com a mãe alternava o olhar entre o corpo sem vida e o funesto rosto da senhora. Com piscadelas lentas, parecia desdenhar do estado penoso da andarilha, que andava curvada como a idade avançada pedia. Olha, mãe, uma bruxa. Foi ignorada. Falou de novo. Repetiu. Até que a mãe olhou assustada para a anciã sujismunda. Vamos, fez o sinal da cruz. A criança repetiu mais alto: uma bruxa! Agora as pessoas olhavam receosas a triste mulher com o saco preto de latinhas na mão. Um cochicho começou e deu partida ao afastamento do corpo morto. Vamos embora, ouvia-se mais continuamente. Pelo lado oposto, via-se um a um sair mais com medo da catadora de latinhas do que com medo do espírito da morta que outrora sentiram. A senhora ficou um pouco acuada, mas não intimidada. Cochichos quase inaudíveis e um trombando sobre o outro para saírem dali: Bruxa. Que mulher estranha. Tão perto da morta. Ela apareceu do nada. Estava aí faz tempo? Eu senti uma energia pesada vindo dela. Parece que tem uma nuvem negra sobre ela.

A senhora foi caminhando devagar em direção ao corpo. Os poucos que continuaram por perto se afastaram ainda mais, observando a corcunda de longe. Outros novos transeuntes se aproximavam com cautela. A idosa ficou ao lado do corpo e deixou cair sobre o chão o saco com as latinhas. Agachou-se ao lado da defunta. Quem lá estava podia sentir a respiração tensa que se instalou no ambiente. As pessoas suavam. Os curiosos se benziam mais e mais. O que aquela mendiga tem? Ela vai fazer alguma reza. Por que tão perto do corpo? A idosa afastou com certa dificuldade uma das pernas da defunta e debaixo da perna que não estava dobrada pegou uma latinha vazia. Passou ela na roupa e a colocou no saco. Arrastando o plástico preto barulhento, saiu de perto lentamente do corpo morto.

Ela não olhou para trás.

Fim

TADEU RODRIGUES, advogado, escritor, autor dos romances A Grande Peça, Entrelaçadas e Sebastião & Clara; do livro de poesia A Utilidade do Rascunho; dos roteiros em curta-metragem Maria Aprendeu a Apanhar e Preces. Curador literário do Projeto Tempo Suspenso. Vencedor do concurso literário na FLIP 2019, casa para todxs, com o livro Depois Que As Luzes se Apagam. Colunista dos jornais BrandNews e Jornal Monte Sião. Apresentador do Podcast Literário Rabiscos.

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