Farpas

Resenha do livro Júpiter Marte Saturno, de Irka Barrios - por Juliana Cunha

Farpas

Se me pedissem para sintetizar os contos de Irka Barrios em uma imagem, seria a de uma farpa. Uma madeira afiada que entranha na pele, capaz de permanecer escondida por conta da sutileza, mas sentida em toda força e dor quando deslizamos o dedo pela superfície ferida.

Como farpa, Júpiter Marte Saturno é uma sequência de quatorze pequenas rasgaduras no corpo do leitor, feitas através da escrita cirúrgica da autora. Essa destreza literária aliada a uma profícua imaginação imbui as curtas narrativas do livro de uma agressividade calculada e potente, revelada em cada história.

De contos fortes, sintéticos e sem metáforas óbvias, é difícil dizer sobre o livro, é mais fácil senti-lo. É ser ferido por uma farpa. Sentimos a peça cravada na pele, mas não conseguimos vislumbrá-la, compreendê-la ou mesmo perceber seu tamanho dentro de nós. É preciso que outra pessoa venha de olhos atentos e ilumine o corpo em busca da ferida. Ela passa o dedo e dizemos "é aí que dói". Esse outro é a autora.

O incômodo é provocado em contos como "O bicho", no qual certo animal desconhecido atormenta uma mulher viúva ao caminhar por dentro de seu corpo. Outras criaturas de ações semelhantes são o animal viscoso e indesejado do conto "Flores domesticadas" e as moscas azucrinantes no hospital do conto "Drosophila", que perturbam médicos frívolos e descompromissados com a saúde pública.

Outras vezes, a estranheza é provocada pela forma como as personagens cedem ao insólito em suas vidas, engendrando uma sensação de desconforto escalonado ao longo das histórias. Neste âmbito, destacam-se os contos "Horizonte alaranjado", no qual a protagonista cede a um desejo digno de um filme de faroeste, e "Conceito comida semelhante", que por tamanha aproximação da vida e requinte gastronômico perturba e causa ânsia.

O universo infantil e os terrores da imaginação profícua também estão presente no livro. Se ainda nos mantivermos na visualidade da farpa, se aproximam do trabalho de imaginar a forma daquilo que nos causa medo e dor, mas não conseguimos ver. Percebemos apenas a experiência resultante, mas não sabemos o que nos machucou.

Irka Barrios nos faz sentir, ao revisitar o mundo por uma perspectiva pueril, o tamanho do medo pelo desconhecido em nossas mentes. Em "Damião sob a pirâmide", encontramos a análise simples e espinhosa da morte feita por uma criança. Em "O Verão de 85", uma criatura monstruosa a assombrar as férias infantis, e em "Bonecão", uma janela aberta para uma criatura a nos observar maliciosamente.

Dois contos excepcionais são "O coelho branco" e "Mancha como asas de borboleta", em que a passagem do tempo tem sua crueza revelada pela autora. No primeiro, em uma aproximação da narrativa surrealista da menina que penetra o País das Maravilhas, experienciamos um conto sucinto e poderoso, que nos prende em uma eterna releitura, como em círculos, em busca do sentido da angústia provocada pela leitura.

No segundo, o tempo é tomado pelo cansaço. Célia, uma enfermeira extenuada, deseja um descanso. Diferente da protagonista de "O coelho branco", que corre contra o tempo, ela deseja apenas dormir um pouco, coisa da qual é impedida pelo trabalho. Uma doença desconhecida lhe traz uma marca como de borboleta, símbolo de metamorfoses, e indica a mudança que está por vir.

Assim como nas duas narrativas anteriores, a reflexão sobre o feminino está presente em diferentes contos da coletânea. Em "Letra A", a disputa pelo corpo das mulheres casadas e o medo de traição traz uma história sobre pertencimento que tange o cômico. "As viúvas do silo", conto fortíssimo, traz o poder da revolução silenciosa de mulheres fortes, capazes de aterrorizar aqueles que desconsideram suas dores.

Os dois contos que sucedem "As viúvas do silo" são "Parte de dentro" e "Júpiter Marte Saturno"; sendo o último aquele que dá nome ao livro. São, sem dúvida, três socos no estômago. Ou melhor: três farpas gigantes, talvez estacas, cravadas no corpo leitor. "Parte de dentro" traz o machucado no tornozelo. Ele marca a vida da protagonista ao impedi-la de andar, de seguir em frente, incomodando-a com uma dor constante, que resguarda o passado. É horripilante, e, ao mesmo tempo, poderoso e único.

"Júpiter Marte Saturno", que batiza o livro, faz parte do grupo de contos de Irka Barrios nos quais há mais dúvidas do que respostas. Ao evocar os planetas e o universo para a vida, loucura e desejos terrenos, a autora traz o arrepio do horror cósmico sem recorrer a monstros. Inverte não só a ordem dos planetas, mas nos faz duvidar se, ao olharmos atentamente para as pessoas e para o céu, também seremos capazes de enxergar uma nova ordem no mundo. Até agora eu não sei o que dizer desse último conto. Mas sinto a farpa aqui, dentro de mim.


 JULIANA CUNHA é escritora, natural do Rio, mestra em artes pelo PPGARTES/ UERJ e graduada em história da arte pela mesma universidade. Publicou contos independentes, em revistas literárias e em coletâneas, e foi uma das vencedoras do 2º prêmio Afeigraf 2020. É crítica de arte e assistente de curadoria em um museu carioca. "Notívagas", seu livro de estreia, está em campanha de financiamento coletivo no catarse.

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