sufocada pela desmemória

Resenha do livro Cheia, de Natália Zuccala - por Laura Redfern Navarro

sufocada pela desmemória

Construído em cima de uma tessitura que parte de uma vivência fragmentada, espatifada e irritada, Cheia é o primeiro romance da escritora e professora Natália Zuccala, tendo sido publicado pela editora Urutau. Com um texto fortemente elaborativo, a autora trabalha, a partir de um fluxo de consciência amparado na instabilidade e no esquecimento, a afetividade de uma mulher atravessada pelo abuso psicológico, ou gaslighting.

A premissa que inicia Cheia já nos encaminha para esse estranhamento visceral. Somos levados a Amanda, uma mulher que chega a um restaurante e pede mesa para um, esquecendo que está acompanhada do marido, Carlos. O fato, que gera um constrangimento para o garçom, revela a repulsa vinda da mulher, que se percebe impotente. Logo de cara, percebe-se que essa impotência sustentaria o relacionamento.

Mas Natália vai além ao trazer essa crueza ao colocar o ponto de vista de Amanda como eixo central. O texto se torna fragmentado, com lacunas na escrita e na pontuação, elencando um sujeito desestabilizado e dissociado, que se alterna entre a primeira e a terceira pessoa. Essa construção é constantemente atravessada pela figura de Carlos, que se moldaria enquanto um "equilíbrio" à desmemória. Assim, Cheia inteligentemente traz a discussão potente acerca da sanidade de Amanda, questionando, a todo momento, sua instabilidade:

"Interrompe-se porque sente um toque no braço e se lembra: tinha saído para jantar com o marido. Saiu para jantar com ele, como pôde esquecer? Vim o caminho inteiro ao seu lado e não percebi? Onde ele estava? Era o que me faltava: Carlos. (...)"

(p.9)

Portanto, ao dar voz aos escombros emocionais de Amanda, nos perguntamos se ela própria estaria enlouquecendo de fato ou se estaria "cheia" do controle de Carlos, que saberia de tudo o que ela esqueceu, situação comum dentre as vítimas de violência psicológica. Vale lembrar, ainda, que a narrativa da personagem também compartilha de diversos processos presentes em narrativas traumáticas, como a dissociação, a repressão da memória e a cisão na linguagem, como pontua Carola Saavedra na orelha:

"(...)Porque, por trás da desmemória, há algo que precisa não ser dito, algo do âmbito do horror. E de repente, percebemos que Amanda é Amanda, mas também é todas as mulheres, e também somos nós."

Afinal, talvez o mais angustiante de todo o romance não seja o esquecimento de Amanda acerca dos fatos, mas dela mesma. Assim, a presença de diversas violências que a atravessam sejam conflituosas, essencialmente, por lembrarem a protagonista de si própria, ou, ainda, de sua realidade ("E de repente, percebemos que Amanda é Amanda, mas também é todas as mulheres, e também somos nós"). Portanto, Natália constrói uma tessitura feminista ao livro ao elaborar um mergulho interno para dentro de relações abusivas, mas normalizadas, colocando a figura da chamada "mulher louca" para o centro da discussão.

Essa releitura é o que torna Cheia um romance tão relevante, especialmente porque não deixa de lado a construção formal ou técnica do texto - mas tece ambos os aspectos de forma harmoniosa, destacando a sua visceralidade:

"Quando ele acordar vamos voltar para essa corda bamba, mesquinha e familiar: quem errou mais; quem perdoou menos; quem articula melhor o discurso de acusação; quem ofende mais, sem que o outro perceba; quem engendra mais culpa; quem ganha mais, oferecendo menos; quem se lembra mais e com mais certeza, mas agora. O silêncio é imperativo"

(p.26)

Essa construção textual, que proriza a escrita de um vazio, pode ser lida como um esboço, um ensaio da voz autêntica de Amanda no texto, ainda que essa esteja poluída pelo meio externo. Portanto, denota-se um caráter testemunhal na narrativa da desintegração de Amanda, que pode ser lido não apenas como relato, mas como denúncia. Assim, há espaço para a voz da personagem existir - e acessar outras vozes, criando terreno para o diálogo.


LAURA REDFERN NAVARRO (2000) é poeta e quase-formada em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Toca a plataforma literária independente @matryoshkabooks, focada em literatura brasileira contemporânea. Pesquisa o testemunho enquanto subversão do trauma, do feminino e do corpo em O Martelo, de Adelaide Ivánova. Publicou, em 2020, o livro Matryoshka (Desconcertos). Em 2021, participou do Curso Livre de Formação de Escritores da Casa das Rosas, o CLIPE - Poesia. Integra a equipe de poetas do portal FaziaPoesia.

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