Três Poemas de Luto & Levitação
Ronaldo Bressane
Canção retorno para uma flor na chuva
Estava certo nosso encontro
mas você cancelou pois cansada
então caiu a maior chuva do ano
fiquei vendo nossos e-mails
nossa escrita no mesmo plano
trocas de sons e DRs e nudes
fazia tanto sol nas fotografias
peles desafiavam o futuro horror
em breve teus pixels só petrichor
quando fomos macerados por dentro?
gosto perfumado retém minha língua
engano instalado não desfeito, lembro
Dias depois você me abriu a casa
tão diferente minha primeira visita
a chuva ruía e fomos de chá com bolo
um jeito de roubar tempo ao tempo
fofocando e zoando os amigos
o apocalipse parecia uma ideia boba
tua língua retém calor e arame farpado
você lê uma carta pros teus filhos
pra que quando cresçam te sintam
mas teu coração é maior que teu peso
assim teu plano é só ouvir teu corpo
restarão mensagens em desalinho
traços de flores embalsamadas
você diz que estar perto não é físico
e temo quebrar teus ossos no abraço
mas você já não tem medo de nada
ainda nos tambores silenciosos
ainda no parapeito do edifício
teu sorriso ainda retém o esplendor
(em breve eu também petrichor)
Sem chão
Jacques Rancière disse
o tempo da pandemia
é um tempo suspendido
sugere que vivemos
num tempo em levitação
um tempo que flutua
um tempo sem tempo
frère Jacques frère Jacques
tá dormindo?
os boletos não flutuam
a morte bate à porta
os amores em pânico
se penduram por ganchos
na pele como no filme
Um Homem Chamado Cavalo
não levitamos ou flutuamos
na melhor das hipóteses
estamos a filosofar
com as mãos entre a corda
e o pescoço e os pés
dançando uma tarantela
tudo dentro de uma tela
de alguém que pausou
a nossa live suspensa
pra pular pela janela
Salva na nuvem
Quando você diz nossa história vai sumir
feito gritos por refúgio sob a calamidade
lembro do androide moribundo
dizendo das lembranças perdidas
no tempo como lágrimas na chuva
Aquele androide foi malandro
em seu desespero de morrer
: dizia água salgada some na doce
e humanos sabemos
todo rio corre pro mar
Como a memória desaguaria no sonho
do androide que o matou
Como nossa história some numa nuvem
pra matar uma outra sede
Ronaldo Bressane, 50, paulistano, é escritor, jornalista e professor de escrita criativa. Publicou, entre outros, o romance Escalpo (Reformatório, 2017), o livro de poemas Metafísica Prática (Oito e Meio, 2017), e os romances gráficos V.I.S.H.N.U. (Cia das Letras, 2012) e Sandiliche (Cosac Naify, 2014). Os poemas aqui apresentados formam no livro inédito Processo de Demolição.
Site: ronaldobressane.com.
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