Comédia

Danilo Brandão

1.

Depois do ato.

já fecharam. não. não quero ver. deixa ele descansar, moço. eu não sei. oxe, como o senhor pode saber de uma coisa dessas? como pode saber que só os pulmões foram prejudicados? matuto dos infernos. esse ai já nasceu meio morto. todo quebrado por dentro. claro que sofro. mas isso não é da sua conta. vá chamar o médico, por favor. todos já foram. graças a deus todos se foram.

doutor, o que preciso fazer agora. a delegacia? por que precisaria fazer uma coisa dessas? assinar uns papéis. como assim? problema nenhum. mas em tempos como esses. é um aperreio e tanto. os ônibus, as pessoas. os médicos já liberaram, não é isso? então, moço. só os pulmões foram prejudicados. o matuto mesmo falou. já está clara a causa da morte. vi no celular: não é pra ficar nas ruas. não é pra dar mole pra ele. pra ele mesmo. ele vai pegar. que dia? preciso ir pra casa. as meninas não comem há três dias. filhos? não. são as nossas gatas. quer dizer, são as minhas gatas. agora elas são apenas minhas. enfim. estão em casa. os vizinhos não podem cuidar. não entram em casa. tenho medo. devem ter revirado tudo atrás de comida. da última vez foram fundo no bueiro do quintal. pegaram uns ratos que moscavam por lá. foi sujo. é uma complicação. uma complicação. já vou indo. vou indo. meire há dias que não liga.

2.

O ato

meire ligou e disse que seu filho tinha morrido. pegou ele. pegou a doença. menino novo. ruim de escola, mas bom filho. mais ou menos trabalhador. a televisão ligada. como sempre. mal se podia pensar com todo aquele barulho. homem dos infernos. ela mesmo me disse. os hospitais estavam abarrotados. uma cara de fim de festa nas salas dos hospitais do país inteiro. não tinha sobrado nada. e seu filho morreu na esquina. gritando um último suspiro, como se tentasse tragar o resquício do cigarro aceso há muito tempo. era sua derradeira força. a busca pelo último ar. estranho. esse negócio rouba o ar da gente, é? como pode uma coisa dessa? já vou. está no fogo. no fogo, homem. como pode uma coisa dessa? um homem desse. meu deus. como é mesmo que meire disse? o filho tentava ir pra casa depois de ter seu atendimento recusado. era só ter escutado o menino. mas que diabo de hospital. a enfermeira disse que não tinha como. que coisa mais estranha. como um hospital pode não atender? o menino se irritou. puxou meire pelos braços e atravessou a sala de atendimento com ódio. bravo demais. passou pelos corredores. foi em direção às ruas. antes de colocar o pé na recepção, o ar acabou. teve sorte de andar mais alguns passos até a esquina. caiu. isso meire contando, não é. vai saber. coisa mais esquisita. meire não ia inventar uma história dessa. os mortos. eles não estão mais fazendo exames para saber a causa da morte. a morte. o que seria mais uma morte? todos estão indo. meire me disse mais uma coisa. mas essa televisão não me deixa pensar. meu deus. homem dos infernos. o que era mesmo? ela não me deixa pensar em mais nada. é enlouquecedor. ainda dói. homem dos infernos. ainda dói aquele da última vez. o tapa ainda está na minha cara. não é nada engraçado. desgraçado. mas você ria. caralho. eles não estão mais fazendo os exames. as pessoas estão morrendo. as mortes no país. não tem mais ninguém nas ruas. no fogo. a comida está no fogo. tudo que preciso está no meu bolso. vai, minha filha. anda com isso. puta que pariu, que barulho. que merda de barulho. que merda de homem. que merda de vida. essa televisão. pega, menina. dança. lembro que tinha dança. a gente se conheceu durante uma dança. isso. puxa. puxa. joga na mesa. o filho de meire era ruim na escola, mas bom menino. já foram oito vezes. homem dos infernos. oito tapas no mesmo lugar. barulho. as mortes hoje subiram ainda mais. o país já nem existe. como podem não ter atendido com o menino dentro de um hospital. com o menino dentro da porra de um hospital. manifestantes tomaram as ruas nesta quinta-feira pedindo o fim do isolamento. a volta do comércio. a vida normal. manifestantes. não estão mais fazendo exames. as pessoas morrem, mulher. elas morrem e eles agora nem querem mais saber a causa. manda pra cova. perfeito. isso. manda. pega. agora pega o outro. o outro. estou velha. pega o outro. joga na mesa. que barulho é esse? o jornal acabou. ele vai levantar. anda. pega o prato, a colher, o feijão, o chumbinho, o apontador, raspa o chumbinho, joga o arroz, a carne. ele se levanta. aponta o chumbinho, empurra ele. joga mais pra dentro. afunda. afunda no apontador com o lápis. acabou o jornal. lá vem ele. um minuto. acaba de ficar pronto. vou tirar do fogo. agora mesmo. voltou. aponta o chumbinho. larga o lápis. aponta. mistura. dá pra ele. volta. aponta o lápis. aponta. homem dos infernos. come tudo. você não passa de um número. agora.

aponta. aponta. aponta o lápis. assiste a derrota do país. acalma. eles nem estão mais fazendo os exames.

a novela já vai começar.


arte: Carlos Varella


Danilo Brandão é redator e roteirista. Nasceu em São Paulo, enveredou por Londrina, Paraná. Autor do livro de contos Os Minutos Que Me Restam (Bar Editora).


Carlos Varella é ilustrador e jornalista. Tem trabalho autoral inspirado no cotidiano, nas relações sociais e nas criações do imaginário. Se arrisca entre fanzines, exposições e encomendas. Atualmente, publica no @molho_pardo_arts.

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