Da travessia na noite profunda
Santiago Santos
Na primeira noite, deitamos numa clareira. Um fica acordado, de sentinela, mas os lobos chegam sorrateiros e o homem se acaba sem escândalo com o rasgo no pescoço borbulhando sangue. Sobrevivemos, acostumados a acordar tateando a lâmina, mas a matilha leva metade do grupo. Depois disso não dormimos mais.
Quando o sol dá as caras, comemos em silêncio e seguimos, tentando decifrar o mapa que carrego no bolso. Que ele tenha sido desenhado por um bebum que se gabou de atravessar várias vezes esse trecho maldito se torna logo uma piada de mau gosto. É com os seus pedaços rasgados que começamos a fogueira da segunda noite. Um homem vai cagar no mato e não volta. De manhã, achamos um braço.
Eu, que já tinha perdido a fé, volto a rezar. O dia revigora e trotamos até os músculos das pernas travarem, mas não encontramos a cachoeira, o marco final, a essa altura relegada à lenda. A noite vem e com ela os tremores. O único que não resiste a fechar os olhos amanhece comido por formigas gigantes, restos de ossos sob o cobertor.
Os restantes decidem voltar, não importa o quanto eu ache que estejamos próximos do fim. Me dão um ultimato: acompanhá-los ou seguir sozinho. Amaldiçoo sua fraqueza e meu próprio medo. Refazendo o trajeto, não consigo afastar a sensação de que a cachoeira estava atrás do próximo monte, da próxima curva, do próximo bosque.
A floresta parece reconhecer nossa desistência. E continua nos despachando, mais calma e metódica. Um tropeça, escorrega pela encosta e acaba atravessado por um galho. Outro tenta acender o fogo, queima o olho, a ferida cresce e empretece e em poucas horas ele está minando pus pela boca aberta. Outro é eletrocutado por um raio. Outro come frutas venenosas e vomita sangue. Outro engasga com água. Sobramos apenas eu e o mais jovem dos homens que contratei, e suspeito que é o medo, e apenas isso, que instila nele a febre que acaba por consumi-lo, delirante.
A floresta me poupa, me cozinhando no fogo baixo da adrenalina. Não durmo há dias, tomado pelo cansaço, pela sede e pela dor de cabeça. Os sussurros da noite e da mata me despertam solavancos involuntários e começo a ganir feito um cachorro. Me arrasto como posso de volta ao início.
O cheiro é a primeira pista. O caminho, farejado. As quatro patas batem leves na terra e finalmente mato a fome abocanhando a carne quente de um homem, junto de vários outros adormecidos numa clareira. Sei qual será o meu fim se continuar desafiando suas lâminas, então arranco um naco suculento e me afasto pra mastigar, atrás das árvores, enquanto meus irmãos lutam.
Sobram poucos de nós.
Passamos a caçar animais pequenos e juntar forças para futuros
ataques. Nossas fileiras engrossam. Homens continuam fugindo, lobos
continuam chegando.
SANTIAGO SANTOS é escritor e tradutor. Escreve minicontos no flashfiction.com.br e tem dois livros publicados: Algazarra (Patuá, 2018), uma compilação de minicontos, e Na eternidade sempre é domingo (Carlini & Caniato, 2016), uma aventura pé na estrada que entrecruza a história e a mitologia dos incas, além da noveleta de piratas espaciais Hei, hou, Borunga chegou, na revista digital Mafagafo (2020). Já publicou ficção em antologias, jornais, blogs e revistas. Vive em Cuiabá desde moleque, onde toma tereré o dia todo.
Leia também
- A coisa preta ou Um rito de passagem, Edvaldo Ramos Leite
- Bonecão, Irka Barrios
- Mãe, Márcio Benjamin
- O sebo, Caroline Joanello
- Carnívora, Alice Priestly
- A sala 33, Wesley Barbosa
- Arrepios na América Latina: um olhar para as histórias sinistras de autoras da região, Oscar Nestarez