Coronárias: mulheres escrevem a pandemia

Fernanda Hamann

Coronárias: mulheres escrevem a pandemia

Quando resolvi levar a sério um impulso de escrita que insistia em mim desde menininha, um troço estranho que não sossegava enquanto eu não escrevia, a primeira pergunta que me ocorreu foi: para quê? Para que serve a literatura? Se eu inventar de me tornar escritora, o que vou fazer no caso de uma guerra, por exemplo? Numa guerra, importante é o médico, que cura os feridos, o engenheiro, que conserta as pontes. Não o escritor. Anos depois, a própria literatura me trouxe uma resposta (apenas uma, entre tantas possíveis). É isto um homem?, de Primo Levi, me jogou na cara uma hipérbole inimaginável da pulsão de morte que habita os homens, um abismo que nenhum médico cura, nenhum engenheiro conserta, abismo que somos nós, explicitado pelos campos de concentração nazistas. O testemunho de Levi me ensinou que, numa guerra, o escritor é o mais importante. Porque pode afetar as pessoas, gerações de pessoas, e fazê-las pensar que as guerras nem deveriam acontecer.

Do ano em que saiu de Auschwitz até o fim da vida, Levi se dedicou ao esforço de escrever o indizível. Vários autores, como ele, deixaram de presente para o mundo registros pessoais de traumas coletivos. Penso em Carolina Maria de Jesus, que escreveu em primeira pessoa as dores de tantas pessoas, vizinhos, que viviam (ainda vivem) dificuldades extremas como as dela.

Quando o trauma coletivo da covid-19 se instalou entre nós, uma doença que matou tanta gente (mortes objetivas e subjetivas), que ameaçou as amizades, os amores, os trabalhos, trouxe o medo, o luto, a miséria, quando o coronavírus se espalhou e sufocou a todos nós, o impulso de escrita insistiu em mim. Algumas madrugadas vorazes, pari um conto, Asfixia, e ele me ajudou a respirar. Mas não por muito tempo. Eu precisava de mais palavras, não só as minhas, para dar suporte a esse real insuportável. Falei com algumas amigas, que disseram, é tudo tão cru, tão atual, não consigo escrever agora, só depois. Outras se arriscaram. Os contos começaram a surgir, a circular. De repente, já não era um filho só meu. Ele se quis um livro de mulheres, e eu assenti. Achei bonito: se o corona é masculino, nós somos coronárias - substantivo feminino e plural.

Desde cedo, a Patuá embarcou no projeto, com seu talento, já consagrado no mercado editorial, de reconhecer e revelar novos expoentes da escrita no Brasil. A editora ajudou na escolha de mais escritoras para compor esse corpo heterogêneo, nosso filho, que tem data prevista para o parto no mês de março. Vamos celebrar o nascimento com a vontade de quem passou anos adiando encontros.

O livro reúne autoras premiadas, renomadas, a outras que começam agora a se destacar no cenário da literatura brasileira. São mulheres brancas, negras, jovens, maduras, trans, de várias regiões do país, juntas no silêncio ruidoso de um testemunho quente, escrito no calor dos acontecimentos. Começa com contos curtos e intensos: um sangue venoso, venenoso de gás carbônico, que pulsa forte em veias apertadas. Depois vem um sangue arterial, fluxo grosso, histórias com um pouco mais de fôlego. O resultado é também um recorte histórico de uma geração de mulheres que escrevem no Brasil, sobre o Brasil, sobre como um problema mundial se mistura com as nossas enfermidades nacionais.

Quando a realidade parece mais absurda que a ficção, a ficção é convidada a construir contornos para a realidade. Nem sempre a literatura serve para aplacar o horror. Às vezes, ela até o intensifica. Mas no laço literário, pelo menos não estamos sós. As palavras de quem escreve apostam no encontro com o olhar do outro. Fazem companhia ao leitor, subvertem o isolamento. Consertam pontes. Curam feridos.


Coronárias: mulheres escrevem a pandemia

Editora Patuá, 2022

Fernanda Hamann (Org.), Natalia Zuccala, Cinthia Kriemler, Morgana Kretzmann, Renata Belmonte, Cristiane Sobral, Amara Moira, Sueli Rodrigues Barbosa, Jana Calciolari, Lilia Guerra, Paula Ignacio, Paloma Vidal, Tuanny Araújo, Thais Lancman, Sofia Boito, Juliana Faddul, com orelha de Adrienne Myrtes


Fernanda Hamann. Psicanalista, escritora e pesquisadora carioca, publicou o romanceCativos(7Letras, 2015), a autoficçãoCoisas bizarras que você só descobre quando está grávida (Rocco, 2015) e mais de dez livros por encomenda como redatora e ghostwriter. É professora na Pós-Graduação em Escrita Criativa do NESPE (Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais) e pós-doutoranda no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

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