Zepelim AR15 ao som de Criolo e voz de Mauricéa.

Morgana Kretzmann

Acordei às quatro horas da manhã num susto. Coração acelerado. Abri a janela e um sol alto se mostrava debochado no céu. Coloquei o abrigo azul marinho, boné, máscara, luvas, óculos e tênis. Saí. Álcool em gel e chave no bolso. Afonso Bovero lotada. Carros, motos, ônibus, pessoas, cachorros, gatos e até pombos estavam de volta. Todos olhavam catatônicos para cima. Próximo a antena da Sabesp pairava um dirigível, um zepelim, e projetado dele se ouvia o som de Criolo cantando Não existe amor em SP.

As laterais do Zepelim se abriram, homens e mulheres vestidos com as camisetas da seleção brasileira de futebol, portando fuzis AR15, começaram a atirar em todos nós. Corri o mais rápido que pude para tentar chegar ao restaurante dos árabes para me proteger ao mesmo tempo em que via pessoas sendo atravessadas pelos projéteis. Faltava muito pouco. Questão de passos quando fui atingida na barriga. Caída no chão, muita dor, eu só conseguia pensar que não poderia morrer naquele momento, naquele momento não, porque naquele momento eu estava na metade do livro da Adrienne Myrtes , o Mauricéa:

"Quatro filhos de quatro putas. A gangue homofóbica da terceira idade se sentiu ofendida quando me encontrou montada; a gangue da melhor idade para morrer pensou que podia me matar ou matar a fêmea em mim, coisa que mesmo eu não consegui liquidar [...]"

Precisava saber o resto da história do senhor que se fez senhora. Alguém me ajuda, grito, Omar, acordo com dor na bexiga. Saio da cama e vou tateando no escuro para não acordar P. até chegar ao banheiro. Sento no vaso e me esvazio do pesadelo.

Já vai amanhecer. Pessoas retornarão às ruas. As máscaras ainda serão obrigatórias. Os abraços e beijos ainda serão proibidos.

Já vai amanhecer e hoje vou finalmente sair para trabalhar. A Ria Livraria reabrirá às quatro da tarde, teremos clube de leitura e depois lançamento do novo livro do Santiago Nazarian, Fé no inferno.

Já vai amanhecer, vou terminar de ler o livro da Adrienne Myrtes, não posso correr o risco.

Já vai amanhecer. Ainda tenho esperança. Será que Geni, suas pedras, sua maldição e sua vingança?



Foto: Paulo Scott

Morgana Kretzmann é escritora, roteirista, atriz e produtora cultural na Ria Livraria. Lançou seu primeiro livro, "Ao Pó", e comemorou seu primeiro aniversário em São Paulo na Ria, quando Marquinhos distribuiu pirulitos, chocolates língua de gato com granulados coloridos e estrelas douradas para os convidados e Paulo Scott discotecou. Foi a primeira festa de aniversário na livraria. 

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