O engodo de Laura

Andreas Chamorro

- E não está bom lá? 

bom? claro que não, eu tenho que pagar sim, o teto, lavando para ela, passando para ela, separando as roupas dela e daquele porco do marido dela.

- Isso tudo é para te mostrar que você precisava tomar uma atitude, viu como eu sempre tive certa? 

As duas mulheres caminhavam na direção duma lanchonete mequetrefe. Do lado esquerdo de quem entra, atrás de um balcão de vitrinas engorduradas, dois homens trabalhavam de testas suadas em meio à fumaça de sanduíches. Um deles, delgado e jovem, atendia a freguesia homogênea do logradouro, olhou para Laura com risadas na mente. 

- Bom dia. 

- Eu quero um café - pediu Laura. 

- Me vê uma coxinha, meu amor - pediu Viviane. 

Laura tornou bruscamente o rosto para a amiga assim que o rapaz foi-se em direção da prateada cafeteira industrial, os olhos miúdos, como quem desconfia. 

- Que é Laura? - interrogou Viviane; a voz, três oitavas acima; as mãos acertando a alça da bolsa de modo que ficasse mais firme nos ombros. 

- Prontinho, aqui tem açúcar e adoçante para a senhora escolher - disse o franzino no uniforme terracota após entregar um par de pires com os pedidos.

- Senhora? Acha que eu tenho quantos anos? - replicou Viviane, com um singelo biquinho. 

Enquanto o outro praticava a adivinhação da idade alheia, Laura reparava na amiga externamente já que interiormente via Catarina dentro da cozinha, a mão na cintura, as unha pintadas em francesinha, o marido com um terno sentava na mesa, chorava e chorava e chorava eu não sabia nada, nem Catarina nada sabia, ele não contava, não abria a boca a louça na cuba tratava-se de três pratos com molho e pedacinhos de carne, oito garfos, duas colheres, seis copos e a frigideira com os queimados de fritura como uma areia de carvão por sobre o metal, Laura largou a esponja sobre os utensílios e prestou mais atenção na cena que só iniciava Como eu vou falar alguma coisa se você não se acalma meu amor, Como vou me acalmar, Catarina?!, Calma Maurício, Desculpa, Laura, estou muito nervoso, Tudo bem, eu e Catarina entendemos. A senhora do outro lado teve seus longos cabelos cor da lua chicoteando no ar, assim que três passos dera para ladear-se à Laura; pegara sua mão. 

- Vamos sentar mais no fundo - então Viviane sussurrou: - Para esses homens não olharem muito pr' gente. 

As mulheres sentaram-se uma de frente para a outra, deitaram as bolsas sobre as pernas e se armaram, uma de um guardanapo, outra de um saquinho de açúcar.

- Sei lá, Laura, às vezes acho que lá não está bom coisa nenhuma, fico vendo seu semblante, olha aí esse olhar triste, Deus me livre, não consegue disfarçar não. 

- Nossa, exagerada, eu só estou com calor. 

Viviane tornou um tanto o pescoço para trás, apontou para a fonte da praça. 

- Ali, prontinho para tomar banho. 

- Não pode tomar banho ali. 

- E você acha que esse tanto de mendigo não tem graxa na pele por quê? 

Laura reparou num monumento metálico, como dois grampos gigantes de papel que dançassem juntos. Três homens tomavam banho com a luz daquela manhã de dez de agosto deitados de olhos fechados, as roupas pretas e quentes, as peles imundas: poeira presa à semanas de suadeiras. Laura, você poderia estar na rua

- Tá, não está bom. Anteontem o Maurício chegou chorando feito criança - deu mais um gole no café, olhou o céu amarelado. - Chegou tirando a gravata de qualquer jeito e jogando na mesa da cozinha, nem parecia o homem alegre que sorria daqui à aqui das primeiras semanas... 

- Eu sabia! Eu te disse... olha Mainha sempre sábia: é uma maravilha nos primeiros dias; quando se mora na casa dos outros, espera o primeiro quilo de sal se acabar para ver. 

- O pior é quando acaba o dinheiro para comprar o sal, como foi no meu caso. 

- Como assim, menina?! - Viviane arrematava sua refeição engolindo a pontinha de massa que sobrara de sua coxinha. 

- Deixa eu terminar de contar que você vai entender. 

Viviane gesticulou com o guardanapo amassado entre os dedos: 

- Vamos pagar e fumar e cê me explica isso direito. 

- Eles brigaram e foi a primeira vez que eles brigaram na minha frente. Nunca vi Maurício tão nervoso, ele batia na mesa... o homem de terno afrouxava a gravata com dedos em gancho, a esposa de pele alva suspirava com força à guisa de chamar sua atenção. Laura mordia furtivamente a lateral de seu indicador, pensava nas noites coléricas que passara com Rubens [Desgraça! Desgraça! um homem robusto socava o aparador, um porta retrato calava-se de cara pro tapete, tampando a lembrança de sua lua-de-mel na praia de Santos. Laura chorava descontroladamente sentada no sofá de couro creme, o suor das mãos faziam as feridas recém marcadas em seu rosto arderem.] Maurício gritara novamente mas direcionado à esposa: Cabô dinheiro Catarina, acabou salão, unha de gel, acabou aplicativozinho, acabou xampuzinho, acabou, já era. Régis me demitiu hoje Catarina tapou a boca, apertou os dedos no pulso de Laura, esta, nauseabunda de seu mergulho nas lembranças do passado, desvencilhou-se e foi para o quarto que há duas semanas usava para descansar Fui pro quarto e deixei eles brigando, aí fiquei ouvindo e chorando, morrendo de medo de ter que sair. 

- Amiga do céu - disse Viviane soltando a fumaça do cigarro em direção ao toldo da entrada da lanchonete. Laura reparava na catedral da Sé. 


se eu tivesse para onde ir eu iria querer ir embora mesmo Viviane está tão feia misericórdia como essa igreja é bonita tudo igualzinho as janelinhas iguaizinhas o que tem lá tem cá vou ter que ir lá nessa tal de OAB, é ali na tal de Clóvis Beviláqua, fica bem amiga e me liga, hein! ligo se eu precisar de ficar na sua casa mas aí que eu iria saber se você é amiga de verdade mesmo Viviane lá vai ela requebrando essa bunda para chamar atenção dos homens mas olha lá é os mendigos que olham ai eu amo e odeio essa palhaça vou fumar mais um cigarro só tem três merda não tenho a porra de um centavo para comprar outro não tem como eu não fumar com o tanto de nervoso que passo todo dia todo dia aquela porra de roupa as cuecas sou obrigada a lavar a cueca como empregada ele não vai comprar cigarro para mim ou compre porque é meio trouxa mas é melhor pedir o cigarro do que dinheiro porque dinheiro vai lembrar da demissão e isso é o que eu menos quero quanta gente sentada na entrada da igreja misericórdia olha que cabelo horroroso dessa neguinha parece um monte de cobra ah dona Laura agora você vai pegar trauma de negra porque seu marido fudeu com uma por meses meus parabéns vai se permitir virar um monstro vai se permitir se assemelhar a Rubens eu tenho que parar de falar comigo mesma porque é assim que começo a pensar que estou louca [Laura enfiava o rosto entre as coxas, balançava para frente e para trás sentada na beirada da cama] Não posso pedir para ir embora, não posso, eu estou louca. Só quero dar uma de boazinha de preocupada é isso que frio é esse é sempre frio dentro dessas estações é que também a gente vêm do calor não quer mais nada né [o chão da cozinha de Catarina, azulejos angélicos de tão limpos, os armários pretos e brancos, a cafeteira modernosa de cápsulas, a xícara de café frio de Mauricio] olha eu já sinto tristeza só de pensar em voltar para àquela casa como pode ter tanta gente à essa hora por um acaso tudo isso de gente entra no serviço às dez no centro não não se for isso que é vida boa desgraçados tão desgraçados quanto Maurício aquele infeliz que subiu na vida através de malandragem filho de uma puta se fudeu isso foi bom mas aí eu me fodi junto e aí que danou-se é graça demais por isso pode valer à pena sim sair daquele inferno meu celular tá vibrando é tá sim quem é número desconhecido de novo esse número desconhecido como eu tô gorda quase não posso na catraca parou inferno de celular nem crédito tem para mexer um pouco no face Catarina não me ligou na última vez que vim me encontrar com Viviane me ligou e olha que foi pra avisar que tinha feito a tal da torta ficou horrível aquela torta também ela compra frango no Barateiro antigo Barateiro aliás que agora tem outro nome que nem prestei atenção direito no novo nome que cheiro de pão de queijo ah sim é ali que homem bonito da desgraça mas me lembra demais de Rubens aí vai sua frouxa tudo te lembra ele nossa que vento que tem nessa estação meu Jesus pra ter um vento desse Olhou o mapa com todas as estações de trens e metrôs da cidade de São Paulo, Laura admirara as cores antes de sair montando na cabeça o esquema de seu percurso de volta à casa de Catarina e Maurício Amigos de cu é rola que aquela diaba veio já me cobrar de arrumar emprego isso antes do fedido ser mandado embora ainda bem que eu acho que Viviane me entende sempre teve ciúmes de Catarina desde que conheci ela mas ainda bem que ela sabe que Catarina que é a demônia ai tá vindo finalmente vai vim mais vento também nossa que frio da bexiga olha quanta gente tá lotado à essa hora meu pai do céu que ódio ir apertada nessa merda e ninguém vai levantar agora vou ter de ficar de pé vida desgraçada que inferno inferno inferno inferno queria gritar se eu pudesse eu berrava no meio desse povo olha só onde aquela mulher é velha pra estar sentada no banco preferencial é assim que que se fala do banco do metrô é igual fila de banco Você vai tá cometendo uma loucura se você dar esse dinheiro a Rubens estou lhe dizendo [Laura aguardava atrás de cinco pessoas com semblantes cansados, esfregava um palmo no outro olhando para a funcionária de trás do balcão, assim que chegou sua vez pediu para fazer o saque] bem que esse homem podia levantar tá de terno então vai ficar ou na República ou no Anhangabaú mesmo isso ia ser uma maravilha para eu poder sentar e ouvir minha rádio em paz e não pensar em nada vou até escutar outra não vou ouvir a Alpha porque ela vai me lembrar Rubens rapidinho um dos pontinhos verdes quebrou onde que é a estação que não enxergo meu pai na Santa Cecília Santa Cecília se apagou não existe a estação será que está em reforma ou é defeito mesmo mas num metrô do centro o governo tá pobre assim puta que pariu tá pior que eu então ai ele levantou

- Licença - a voz de Laura quase não saiu. 

meu pai como o pacote dele tá marcando misericórdia moço vem mais pra cá ai não acredito que vou chorar não não isso limpa o olho que pegou nesse ferro sujo você Laura está um lixo está desordenada minha casa não tem jeito eu lembro das minhas coisinhas As lágrimas salgadas molharam os olhos de Laura, seu companheiro de banco olhou de canto, uma outra jovem de pé não disfarçara o reparo Porque é isso meu tesouro meu conforto tá dominado por um monstro se eu disser que não tô com saudade vou ser a maior mentirosa do mundo e também se disser que tô gostando de morar de favor na casa de amigos também agora vai é derreter a maquiagem e o povo vai ver as marcas que se foda que vejam que sintam dó de mim que eu gosto vou mentir se disser que não gosto mas porra porque ele tinha que fazer aquilo não adianta esconder de minha mesma que eu entendi que não entendi nada o porquê Rubens me arrebentou se eu fui a corna eu é que mais sofri era de se esperar um escândalo eu tinha de fazer qualquer mulher faria um escândalo se descobrisse um chifre ainda mais de meses aquela preta conquistou ele pela bunda pelo corpo pelo peito porque o rosto é horroroso e também porque é nova aquela praga deve ser muito mais jovem que eu só precisei ver uma foto para saber disso não quero nem escutar mais rádio não consigo prestar atenção em nada em nada em nada puta que pariu de novo essa merda de telefone desconhecido que porra que esse número me liga desde que saí de casa será que tem como bloquear esse número eu vou pedir para Maurício que ele entende de tudo dessa coisas de celular mas ele não tá com humor deve estar um saco como ontem ele vai demorar ainda muito para entender que tá desempregado nossa como é insistente essa pessoa essa pessoa será mesmo que é uma pessoa pode ser cobrança alguma coisa do meu nome que chegou conta e Rubens não pagou por vingança vou ter que tirar a Vivo de lá porque se não ele vai ficar usando meu nome e aí vou ficar mais fodida ainda porra mas se ele olhar e ver que eu tirei do meu nome ou sei lá acho que o técnico aparece para buscar os aparelhos provavelmente aí Rubens vai entender de vez que eu quero sumir mas é isso que ele quer duas semanas já dias semanas e ele sabe muito bem que estou na casa do amigo dele ex-amigo dele acredito será que Maurício fala com ele escondido no celular porra porque não pensei nisso agora deve estar falando com ele dizendo que foi demitido para pedir para eu voltar então por isso ele tá me ligando não Laura não esse desconhecido liga há mais de uma semana você é está tendo esperança isso sim está se iludindo ainda mais que ontem vi que ele me bloqueou eu não devia ter feito aquilo desbloqueado ele e pior que eu pedi pro Maurício ah eles estão se falando e o fedido do Maurício deve estar falando que era bom ter eu ali porque eu estava ajudando Catarina na casa porque isso coisa de homem não perdem a oportunidade de falar mal de mulher das esposas principalmente não é ele sua burra porque ele se fosse te ligar ligaria do número dele onde ele ia arrumar desconhecido a não ser que ele tenha colocado a preta dentro de casa ah eu não acredito que ele fez isso é óbvio está me ligando de outro celular para ela não descobrir que vem atrás de mim e colocou desconhecido para eu não retornar porque eu podia retornar e ela atender mas ia ser o máximo ah ia sim eu iria vomitar tudo na cara daquela desgraçada expulsar ela da minha casa e perdoar a merda do Rubens porque é isso que eu vou ter que fazer se quiser minhas coisas de volta a vagabunda dormindo na minha cama isso é um absurdo e um absurdo muito a cara do Rubens aquele fodido vai ficar ligando pra sempre de qualquer número de qualquer mulher porque não vou atender nunca daqui a pouco liga de novo pode apostar e eu não vou atender vou falar com Viviane se ela me negar de ficar na casa dela vou vomitar umas verdade também é vou ter que dar um jeito [o monumento feito por dois quadrados deficientes lado a lado, como dois gigantes grampos de papel que dançavam, um dos homens deitados cobria os olhos com o antebraço encardido] inferno que eu não sei o que eu vou fazer ah chegou a Júlio Prestes tomara que o trem esteja vazio porque quero sentar no banco mais do fundo possível e chorar sem ninguém me ver olha coitado do homem vendendo fone de ouvido podia ser eu agora e isso tá tão próximo de mim que parece que tá me seguindo isso não é pobreza é diferente de pobreza ou é uma fraqueza mesmo porque quem errou quem me fodeu está bem está com a amante no bem bom e eu que estou a um ponto de virar mendiga como os mendigos da praça da Sé como eu tô cansada só de subir essas escadas olha lá de novo tá ligando de novo bingo o mesmo número desconhecido não vou atender não vou porque eu tenho parar de me iludir tenho que dar um jeito de não morar na rua tenho que dar a volta por cima não é Rubens que me liga ele está apaixonado pela outra ele não quer saber de mim ele não ligaria pedindo para eu voltar mas se for eu volto vou ter que voltar não por ele mas pelo o que eu conquistei porque eu comprei muita coisa naquela casa

Laura parou de repente, Rubens veio em sua mente nitidamente como um fantasma de carne e ossos, sacou um lenço umedecido de dentro da sua bolsa, assoou o nariz e, antes de fechá-la para continuar caminhando, olhou seu telefone que brilhava no fundo. Atendeu: 

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ANDREAS CHAMORRO é paulistano, nascido em 1994 e atua como tradutor e professor de língua inglesa. Leitor assíduo desde a infância, vem experimentando a tecelagem de realidades que é escrever ficção desde a adolescência. Finalista do prêmio OFFflip com o conto A Serpente e autor de Divindades Solitárias (contos, Kotter, 2021)

No momento presente, Andreas Chamorro mantém uma página na plataforma Medium onde publica artigos, ensaios e ficção, simultaneamente, usa seu perfil do Instagram para compartilhar outros textos e poesia. 

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