Dia Nobre, as belezas e as dores de ser quem se é.

Por Morgana Kretzmann e Ian Uviedo

Foto: Stella Paiva

Em seu livro, No Útero Não Existe Gravidade, a protagonista narra, entre outras coisas, o peso de ser mulher e as cicatrizes que isso causa tão cedo em cada uma de nós. Como foi o processo de reconhecimento destas cicatrizes durante a feitura do livro?

no útero não existe gravidade é uma autoficção que parte de um acontecimento que me causou feridas profundas, com as quais lido
até hoje.

ele trata das marcas que são invisíveis aos olhos dos outros, perceptíveis apenas para quem tem a memória do acontecimento, essa teia que balança na tênue fronteira entre
a lembrança e o esquecimento.

escrever sobre traumas tão pessoais têm o seu preço:
               pode nos fazer reviver tudo outra vez,
mas também nos dá possibilidade de criar, de dar outros destinos às memórias

que nos assombram.

a escrita para mim é o lugar do exagero.
esgarço essas memórias, brinco com elas, estico esses fios que me levam em diversas direções, inclusive na direção da cura; crio narrativas que dizem respeito a mim, mas também a muitas outras mulheres que viveram violências semelhantes. por isso, sempre digo que

escrever é um processo terapêutico
               de reflexão
               de mudança de direção
mas nunca de retorno.

eu escrevo sobre o passado para continuar seguindo em direção
ao futuro.


Neste ano de 2021, num Brasil que está retrocedendo tanto nas questões de gênero, o que significa para você ser mulher LGBTQIA+, ter liberdade e lutar?

me reconhecer enquanto uma mulher lésbica
               é um ato político.
               é um ato de resistência.
               é um ato de orgulho.

não sou das que carregam bandeiras nas ruas, não me sinto bem em multidões;
mas faço dos meus ofícios de professora-escritora um manifesto cotidiano.

me inspiro naquelas que me antecederam e que a despeito de todo o apagamento deixaram suas vozes gravadas no papel: cassandras, alices, patrícias, audres, natalias. elas mostram que vale a pena lutar
        pelo direito de ser quem se é.
        pelo direito de existir e amar.

me inspiro também naquelas que virão, nas que ainda engatinham ou que ainda não nasceram. para que elas nunca conheçam o armário; para que elas nunca tenham vergonha de andar de mãos dadas com outra mulher;
para que elas não tenham
        medo.


Você tem um blog chamado Diário Não-Cotidiano de uma Borderline. Pode nos contar de onde surgiu a ideia do blog e como ela tem se desenvolvido?

eu escrevo diários desde sempre.
alguns já não existem mais. outros perderam-se em mudanças ou foram queimados em atos de paixão
               incendiária.
ainda guardo uma caixa com cerca de quinze cadernos e sempre retorno a eles quando me sinto perdida ou vazia de inspiração.

como boa millennial também tive blogs ao longo da minha adolescência e, já faz um tempo, sentia falta de ter um lugar sem limite de caracteres para deixar minhas impressões sobre o mundo e falar sobre as questões relativas à síndrome de personalidade borderline que carrego comigo como a miopia que afeta os meus olhos.
ambas me fazem ver o mundo de forma diferente.
e eu aprendi a gostar disso.

o blog funciona para mim como um
               diário aberto.
nele é como se o leitor me olhasse pelo
               buraco da fechadura
e me dá certo prazer esse voyeurismo.
saber que algo de íntimo está sendo compartilhado,
mas eu não sei quando nem
        com quem.


O seu livro Todos os meus Humores é uma obra a respeito do diagnóstico citado acima. Sabemos que a discussão sobre saúde mental no Brasil é continuamente marginalizada, o que se mostra danoso por excluir uma grande parcela de pessoas. Como você enxerga e como você se enxerga nessa luta? E qual foi o papel do livro nisso tudo?

falar sobre meu transtorno mental não foi uma decisão fácil.
me senti nua no meio do maracanã em dia de fla x flu (no mundo pré-pandemia),
mas foi uma decisão acertada.

me abrir para o mundo foi assumir que eu não preciso lidar com isso sozinha.
todos os meus humores
serviu como uma vitrine onde expus as questões relacionadas ao transtorno:
               solidão
               ansiedade
               depressão
               mania
               ideações suicidas
               uso de medicamentos controlados
               sessões de terapia

eu vim de um lugar onde a gente aprende desde cedo a jogar todos os problemas embaixo do tapete porque sobreviver era
               a única questão.
eu era pobre, morava na periferia no interior do ceará e tive que começar a trabalhar muito cedo para ajudar em casa. passei anos lidando com sintomas na base do
               «engole o choro e continua».
quando consegui certa estabilidade a doença veio como um tornado. levantou o tapete e eu tive que limpar tudo.
(quantas pessoas aprendem a ignorar seus sintomas para sobreviver?)

depois que publiquei o livro recebi muitos feedbacks de pessoas que procuraram ajuda profissional, começaram a fazer terapia e a buscar respostas para suas dores. é muito importante para mim saber que minha literatura ajudou alguém porque produzi-la me ajudou muito.

falar sobre saúde mental é importante. é uma forma de combater o preconceito e normalizar a busca por tratamento especializado a qualquer momento.
               e não somente em setembro.
mas não é fácil, exige um nível alto de empatia. exige olhar para o outro e buscar compreendê-lo.

no meu livro, tem um poema que fala da dificuldade de viver nessa corda bamba.
               «viver em desequilíbrio, não é viver»,
mas como diz jarid arraes,
               «desistir é coragem difícil».

então eu insisto. e pago o preço.


Dois livros depois e a participação em diversas antologias, como anda sua criação? Algum projeto novo no horizonte?

sempre há um projeto novo.
minha cabeça não para e tenho diversas ideias para livros que vou anotando no meu caderninho.

no momento, estou concentrada em desenvolver um romance. um suspense psicológico que acontece no sertão pernambucano com um casal de lésbicas como protagonistas.

não sei ainda como vou conseguir juntar tudo isso, mas vou (risos).
já tenho toda a premissa escrita, e pretendo trabalhar nele este ano e no próximo.


Pode indicar para nossos leitores um livro e um filme ou série que tenham te ajudado a passar o confinamento?

durante o isolamento (que ainda perdura) eu assisti a muitas séries e filmes, mas não li tanto quanto eu achei que leria,

mas dois livros mexeram muito comigo:
a casa da rua mango, da sandra cisneros, que li logo após enviar meu livro para editora e
garota, mulher, outras da bernardine evaristo.

ambos são de tirar o fôlego, e, apesar de serem bem diferentes entre si, tratam de trajetórias de mulheres que não se contentam com os destinos que a sociedade traçou para elas.

indico também uma série de 2001 que eu amei ver: six feet under. trata do tema da morte com um humor irônico a partir da família fisher, que é dona de uma funerária.

um filme que tem uma narrativa bem interessante e que me pegou foi
i'm thinking of ending things
um suspense psicológico surrealista de 2020 dirigido pelo Charlie Kaufman, com a maravilhosa toni colette no elenco.



Dia Nobre é escritora e Ph.D em História. Natural do Cariri cearense, atualmente trabalha em Petrolina, Pernambuco, como professora universitária desenvolvendo projetos ligados à literatura, história, lesbianidades e feminismo. Possui dois livros publicados na área da pesquisa histórica, O teatro de Deus (Ed.UFC, 2011) e o Incêndios da Alma, (Multifoco, 2016), tendo recebido três prêmios por este último, incluindo o Prêmio Capes de Teses (2015). Seu primeiro livro ficcional, Todos os Meus Humores, foi publicado em junho de 2020 pela Editora Penalux. Participa ainda das antologias Visíveis - I Anuário Filipa Edições e Antes que eu me esqueça - 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021). Em maio de 2021 lançou seu segundo livro de ficção, No Útero Não Existe Gravidade, também pela Editora Penalux.

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