Ana Paula Pacheco e a realidade hedionda que ninguém cancela

Entrevista da escritora e professora, Ana Paula Pacheco, por Ian Uviedo

Como você vê o impacto da chamada "cultura do cancelamento" na literatura contemporânea brasileira? Acha que autores serão capazes de se apropriar desse fenômeno com qualidade e originalidade?

Fiquei me perguntando se existe uma "cultura" do cancelamento (você também, quando disse, "a chamada cultura do cancelamento") e a resposta mais direta que me veio foi, só se entendermos "cultura" no sentido em que dizemos, por exemplo, "cultura capitalista". Ou seja, no sentido de expressões que de cara maltratam a ideia de cultura - de saber compartilhado, criativo, de todos e para todos.

O cancelamento vigia, pune, eliminando aparentemente o passo em falso. O que quero dizer é que, mesmo quando ligado a regras de conduta fundamentais, à recusa do que é preciso recusar coletivamente de uma vez por todas - o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, entre outros horrores - o cancelamento consegue atingir o particular na inversa medida em que mantém o status quo. Para testar o que estou dizendo, basta pensar que ninguém consegue "cancelar" o presidente da república, mesmo quando se trata de um rato genocida.

Estamos falando de um padrão trazido pela indústria de massa do tipo BBB. Não se trata então exatamente da (desejável) reação (política) a ideologias de classe, raça, sexo, mas da despolitização da luta antipatriarcal, antirracista, anti-homofóbica, em defesa da população LGBTQIA+, à medida que a discussão é pautada pela existência de um "paredão". O cancelamento não só reproduz a violência social, como dá Ibope aos donos do negócio, enquanto os "participantes" se ralam das maneiras mais humilhantes, odiosas, "criativas", patéticas etc, para vencer um jogo em que, como sabemos, os vencedores são outros e, aliás, não param de ganhar.

Contra o que argumentei até aqui, porém, não me parece pouco importante a sociedade brasileira despertar para uma autovigilância mais crítica.

Bem, quanto ao impacto da "cultura do cancelamento" sobre a literatura, ele poderá ser visto mais adiante. Desde já, porém, acho importante distinguirmos entre, de um lado, a questão interessante, isto é, a dos modos pelos quais essa matéria, o "cancelamento", será recriada, representada pelas obras literárias, e, de outro lado, o quanto a sombra dessa "cultura do cancelamento" terá produzido em termos de diminuição das possibilidades da representação.


Nesses tempos de isolamento, você, como professora de oficinas literárias, têm notado uma confluência de temas na escrita daqueles que estão começando? Que cara você acha que terá a literatura nacional da próxima década, face aos acontecimentos cada dia mais absurdos?

Nas oficinas literárias que coordenei como escritora durante a pandemia, propus alguns temas que considero atuais: por exemplo, o convívio com um elemento estranho (o vírus) e o estranhamento, as quatro paredes, do familiar, examinado em regime temporal 24/7; as persecuções que surgiram; o aguçamento das fantasias; os modos de exposição online e de introspecção. Percebi uma confluência entre formas literárias mais correntes (conto, romance, poema, drama, drama épico etc.) e formas de comunicação remota. Como umas irão alterar as outras? Surgem, com mais força do que antes, temas gestados em canais como Instagram, Facebook, apps de paquera: por exemplo, formas de relacionamento remoto, nas quais se penduram uma série de fantasias, faltas, libido acumulada, ressentimentos etc. etc.

Quanto à segunda parte da sua pergunta, sobre a literatura (que espero que não seja) nacional (no sentido que a palavra readquiriu num contexto de neofascismo, xenofobia, ódio pela diferença), penso que ela terá o enorme desafio de não ser ultrapassada pelo absurdo rotinizado dos tempos. Hoje, é possível que nem a inteligência do surrealismo, tampouco o voo rasante de um realismo literal dessem conta de dar a conhecer aquilo que nos engole.


Na nossa troca de e-mails, você disse estar trabalhando seus textos numa linha mais kafkiana, com personagens bichos e a presença de humor na linguagem. Como tem sido sua relação com a escrita ao longo do último ano? Muitas metamorfoses?

Escrevo animada por Kafka já há algum tempo, desde meu livro de contos, A casa deles (Ed. Nankim, 2009), e em praticamente todas as narrativas curtas que publiquei desde então em revistas (Piauí, n-1, Zero, Ruído manifesto, entre outras). Não digo tanto no sentido de buscar mimetizar o absurdo real do mundo administrado, mas na atitude kafkiana de tomar, ao pé da letra e pela raiz, o mundo, as subjetividades, as palavras. Vale dizer, porém, que vejo Kafka como um escritor realista em sentido radical - pois sua obra revira de maneira incansável a aparência da realidade para buscar representar o real. Assim, ter Kafka por perto é necessariamente experimentar a partir dele, e não buscar repeti-lo, o que obviamente seria impossível.

Embora esse seja um processo de longa data, no último ano senti, sim, minha escrita se transformar, incorporar novos materiais ligados às contradições entre os sentimentos de urgência, desorientação, indignação, entre o sentimento de estar a salvo (porque faço parte das classes protegidas, o que hoje soa irônico, mas ainda não se compara com a situação dos desalentados) e o de no minuto seguinte não estar a salvo (embora não se trate da mesma coisa, a classe média tem vivenciado algo do estado de exceção permanente sob as quais as classes baixas sempre viveram em países como o Brasil, e hoje quase em toda parte).

Outro elemento forte que entrou no livro novo que estou terminando foi o estranhamento da ideia de natureza e a presença racionalizada, ou "raciocinante", de seres irracionais. A natureza não como um contraponto, mas sobretudo como parte da dominação geral. Entrou também humor, uma linha de força que o sr. Keuner, personagem das narrativas curtas de Brecht, acresce a algumas situações kafkianas que enfrenta durante o fascismo na Europa do século XX. Uma componente fundamental, acho, tanto para tentar reaver o distanciamento, como para despertar da perplexidade em que boiamos, meio inertes, muito inertes. Alguém já falou em humor como ingrediente necessário da dialética, da arte de revirar as coisas.


Para terminar, você poderia indicar um livro para os leitores da RevistaRia? Uma leitura para estes tempos incertos.

Gostaria de indicar o livro, Onde estão as bombas (Ed. Macondo, 2019), da Tatiana Pequeno, cujos poemas vim a conhecer recentemente, e me deixaram embasbacada.  


Ana Paula Pacheco é escritora e professora de Teoria Literária na USP. Publicou narrativas em várias revistas, como Piauí, Revista E (Sesc), Ruído Manifesto, n-1, Zero, entre outras, além do livro de contos A Casa Deles (Nankin Ed., 2009) e do infantojuvenil Ponha-se no seu lugar!, recém-saído pela Coleção Vaga-lume (Ática, 2020). Fez pós-doutorado em 2017 na Université Paris-Nanterre sobre cinema e romance pós-1968. Está terminando um novo livro de ficção.   

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