Assim na terra: como no céu!

Luiz Renato de Souza Pinto

A primeira vez que estive em Porto Alegre, em 1993, vendendo poesia na noite, deparei-me com um conjunto de lugares em que a oralidade se espaçava com certo vigor. Bares frequentados pela juventude e intelectualidade traduziam um ambiente de respeito, se não de culto, a esse formato de comunicação, arte, cultura. Voltei outras três vezes, entre esse e o ano seguinte, 1994. Cabaré Voltaire, Van Gogh, Lancheria do João e Bar do Beto eram alguns desses locais.

O Bar do Beto havia mudado para o outro lado da Avenida Venâncio Aires, bem no meio do quarteirão e em uma dessas noites em que eu me apresentava como garçom performático, vendendo meus poemas em bandeja, fui cumprimentado por um cidadão que estava próximo à porta de entrada do estabelecimento e que depois fiquei sabendo de quem se tratava: Luiz Sérgio Metz, mais conhecido como Jacaré. Dois anos depois estava morando naquela cidade e soube de sua partida para outra dimensão.

Li de um salto sua obra Assim na terra, que me acompanha em uma bela edição da falecida Cosac Naify, de 2013. A leitura de Notas sobre Turíbio Núñes, escritor caído, de Jefferson Assunção, lembrou-me desse fato, como também de Tabajara Ruas a quem entrevistei por conta da leitura de Os varões assinalados, outro grande livro produzido nessa república das letras, por muitos ainda ignorada neste país. Taba, como é conhecido entre os sulistas, prefacia o livro de Assunção, ficção platina, publicada em edição bilíngue no melhor estilo pampeano e trinacional que representa.

O primeiro capítulo do livro apresenta trocadilhos com autores, obras e características específicas. Pareço observar a existência de uma pedra, e do próprio Sísifo a carreá-la morro acima. A metáfora do braço de escritor atravessa o percurso inicial. O segundo capítulo, Túnis coloca em movimento as personagens em um cenário esfumaçado. A asma e o Aerolin parecem personagens controversos em meio a tanta adversidade, mas o homem do balcão da farmácia, esse sim, representa os mais altos interesses do mercado - seja ele qual for.

Marina, 19 - o pampa argentino e o estouro dos botões da calça; Boletim de guerra: Leopoldo, o rifle, a sinfonia ensurdecedora; cinco furos para a entrada de ar; caixinha de música - concerto 23; o fuzil, uma cobra negra no meio da grama. A vespa: samba na Argentina, tango brasileiro; três línguas (entre parêntesis); Olhos de robô: fios de aço no precipício; A aldeia chinesa, o Tao do livro: a fenda, I-Ching, se quiser! O globo, por um fio; As ostras, o surfista e a baleia franca; Janete, o torresmo, o bigode, a jaca atravessando o samba - adorno. Tudo está lá, mas a caixinha de música não me sai da cabeça.

A telefunken, a fanta, o carrossel holandês - lembro-me das tampinhas com desenhos, mas não de fotos de jogador. Tinha 16 anos naquela Copa do Mundo, entre a boleia do caminhão e o doutoramento em história. Navegar é preciso; mesmo diante das tempestades desse Mal-estar na Civilização. É como se a voz de certo poeta maldito ecoasse aos ouvidos: "Embriagai-vos"... A âncora - metáfora para esta navegação de cabotagem que rodeia o pampa. Freud, Nietzsche, Baudelaire.

Ligo o experimentalismo de Assunção ao de Metz pela pulsação da linguagem romanesca. O percurso que enovela a influência platina nas duas obras ubica entroncamentos distintos, mas que partilham da criatividade linguística e do suporte mágico de uma boa forma. Em Metz, o Pensário como repositório da tradição e experimentação literária; em Assunção, o deslocamento espaço-temporal que possibilita que o leitor interaja sem perder o senso crítico, mas se aproveitando da cultura popular, das imagens criativas que trazem brilho para o que Metz contrapõe como introspecção.

Talvez essa alegoria possa eximir-se de um ecletismo contemporâneo com certo mergulho teórico que dialogue com as formulações narrativas. Do Aquaplay ao Globo play, o velho "atrito entre o ferro e o vidro"; aquário e panóptico; experiência e pobreza; Pareço vê-lo chegar ao Pensário, junto a Mishima, trazendo no bolso do paletó os óculos de margarida, uma foto da Rocinha, falando da Cinelândia, dando milho aos pombos, percorrendo a Rio Branco com seus passos largos e afetados, a procura de Olga. O grande-pampa-deserto.

Turíbio e Saramago, cada qual com seu pilar. E Borges, e Benjamin, Cortázar. Não soube mais dele. Ainda me lembro da voz de Tabajara Ruas lendo as últimas palavras do livro de Metz.

No meio de um corredor, no fundo dele, no início dele posso lembrar melhor. Mas eu estou numa casa, não sei se esta ou aquela. Tudo na noite ressoa. Tive um livro que extraviei. Tratava de um povo que não conseguia mais usar sua linguagem, pois o conteúdo das palavras-chave fora alterado ou esquecido. Mas no texto havia uma esperança e numa altura da narrativa testemunha: um lugar é habitado e habitável quando dele se pode ter saudade, sempre e somente saudade. (METZ, 2013, p. 204).

Quando leio Cortázar falando sobre o noveau roman, a partir de Butor, fico a pensar nos caminhos que o romance tem tomado nas últimas décadas. Para ele, essas narrativas "ficavam um pouco num terreno que às vezes se aproximava mais do ensaio que do romance, girando em torno de um tema, penetrando profundamente naquilo que toda grande obra literária tem, que é a própria obra literária". (CORTÁZAR, 2014). Tem livro que parece verdade, principalmente depois que acaba. Faz tempo que não apareço no Rio Grande do Sul.

REFERÊNCIAS

ASSUNÇÃO, Jéferson. Notas sobre Turíbio Núñez, escritor caído. Porto Alegre: Besouro Box, 2016.
CORTÁZAR, Julio. O território do romance. In: GADEA, Omar Prego (Org.). A fascinação das palavras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
METZ, Luiz Sérgio. Assim na terra. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

LUIZ RENATO DE SOUZA PINTO, autor de Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), romances, graduado em Letras, com mestrado em História e doutorado em Letras. Publica crônicas regularmente em www.cidadaocultura.com.br, e atua no ensino em três níveis, médio, superior e pós-graduação. Trabalha as relações entre história e literatura, preocupando-se com aspectos ligados à Escrita Criativa e Literatura escrita por mulheres.

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