Karine Bassi, a periferia no centro da arte

entrevista exclusiva da artista Karine Bassi, por Morgana Kretzmann

1. Para começar, vamos falar um pouco do seu novo livro, Sob o Caminho uma Rajada de Ventos. Pode nos contar sobre como foi a formulação desse romance e de onde veio a ideia de realizá-lo?

R - Sob o Caminho uma Rajada de Ventos, ouso dizer, é um artefato literário utilizado para narrar uma história que imita a vida.

Caminhando nesse lugar de pertencimento, reconhecendo onde nasci e onde tenho vivido como sendo "o meu lugar", bem como já diz a música de Arlindo Cruz: O meu lugar/ é cercado de luta e suor/ esperança num mundo melhor/ e cerveja pra comemorar. Escrever esse livro foi narrar as histórias e vivências de tanta gente real, sem fantasia, que existe e resiste nas margens.

As periferias brasileiras estão cheias de figuras como a personagem Sofia, pessoas comuns que sangram, choram, sambam, amam e que são privadas do acesso, da mobilidade, dos afetos e das oportunidades de serem enxergadas em sua totalidade. Traz à tona opressões sociais e denuncia esse descaso com as quebradas e toda a produção intelectual que vem desse lugar.

O legal de produzir essa obra é que ela não foi pensada ou estudada, não houve uma pesquisa para formular os personagens ou a ambientação. Essa história simplesmente já existia e existe na minha realidade e na realidade de quem caminha comigo. É sobre o lugar de onde eu venho e aonde tenho vivido, é a terra que piso desde que nasci. Sofia é o Leandro Zere, o Pieta Poeta, a Joi Gonçalves, o Fellipe Beluca... Sofia vive o que muitos de nós vivemos enquanto moradores do Barreirão, tomando pulão de polícia, sendo privadas do acesso à cidade, das oportunidades de emprego, sendo negligenciadas e invisibilizadas, tendo nossas qualificações sempre postas abaixo da nossa condição social, de raça e de gênero.

Não foi eu quem escrevi esse livro, foi ele quem me escreveu e me deu a chance de me ver em tantas vivências, que apesar dos pesares, me formam cada vez mais e me transformam. Me possibilitam criar e recriar novos caminhos para esses pés cansados.


2. Você é atriz, ativista social, professora, poeta e romancista. Como uma coisa contribui para a outra na sua carreira e na sua vida? Nos fale um pouco como foi o encontro com todas essas artes?

R - Pra nós, que viemos/vivemos das/nas quebradas, se reconhecer artista e ser reconhecido enquanto artista é um processo muito cabuloso! Demanda primeiro aquele olhar profundo pra si e depois uma energia maior de externalizar isso. Eu cresci me vendo em um lugar que a sociedade disse ser o meu. Quando eu entrei na faculdade, a minha mãe disse que era bobeira minha, porque no fundo no fundo, ainda que eu tivesse um diploma na mão, outras pessoas estavam anos luz à frente. Ela não sabe como isso foi marcante e de certa forma impulsionador pra que eu escolhesse o lugar que eu gostaria de ocupar. Aquela frase de que "devemos ser dez vezes melhores". Sem romantização da parada, sabe. Descobri onde eu queria estar quando eu não me via aonde eu estava.

Eu não me via nas narrativas literárias, nem na televisão, eu não via corpos negros e gordos sendo figuras principais nos enredos, nos romances, nas novelas. Então eu só fui lapidando o que era bruto e transformando e ressignificando todos os processos que vivi na infância e adolescência e quando fui ver eu já estava dentro do rolê cultural e artístico. Caí de cabeça. E a gente não quer muito, né. A gente quer reparos por anos de afronta, de chibata, de carne barata. A gente quer colocar nossos corpos invisibilizados na frente das câmeras, das páginas, porque a gente quer (não que tenhamos que provar nada) ocupar esses lugares que foram tirados da gente. E é assim que eu concilio todas as artes que produzo. Sem me limitar a um lugar. Entendendo que fomos postos à margem porque vivemos um sistema retrógado e alienado. E que podemos povoar tanto as margens, mas tanto, que chegará um momento que o centro será apenas um ponto, no meio disso tudo.


3. A editora Venas Abiertas, de Belo Horizonte, é uma editora popular que tem você como uma das idealizadoras e fundadoras. Hoje já é uma das editoras independentes mais cultuadas do meio literário. Vocês estão fazendo uma campanha na plataforma benfeitoria para manter as portas abertas. Nos conte sobre a história da editora, suas coleções, livros lançados? Aproveitando, poderia falar mais sobre as formas de contribuir com a Venas Abiertas e também deixar aqui o site para quem quer entrar na campanha?

R - A editora Venas Abiertas é uma editora popular de caráter sociocultural. Foi idealizada por mim em 2018 e tem se tornado um novo selo fomentador da literatura produzida por figuras à margem do mercado editorial, valorizando e disseminando a literatura produzida por mulheres, negres, LGBTQIA+ e perifériques. Uma literatura insurgente das periferias há muito tempo invisibilizadas, excluídas e marginalizadas dos grandes circuitos culturais no país e que se faz necessária para o rompimento de ideal eurocêntrico e canônico. Em dois anos de atuação, a Venas Abiertas já oportunizou mais de 150 escritoras/es a publicarem seus livros pela primeira vez, seja de forma independente ou colaborativa, em antologias ou individuais. Em 2020, a editora foi finalista no 62º prêmio Jabuti, com a Coleção I - Mulherio das Letras, no eixo de fomento à leitura. Também contribuiu para que José Falero fosse reconhecido como Autor Revelação no Prêmio Jacarandá, tendo publicado seu livro de estreia, o Vila Sapo. Além de possibilitar que escritores à margem acessem o mercado editorial, a Venas Abiertas também tem fortalecido no empoderamento comunitário, gerando renda e proporcionando a inserção de novos profissionais independentes e periféricos na cadeia editorial, como revisores, ilustradores, artistas visuais, designer gráficos, comunicadores, entre outros que fazem parte e constroem o nosso time.

Como tantas outras ações de caráter social, a Venas Abiertas está passando por um momento delicado e com possibilidades de fechar as portas, devido a crise causada pela pandemia. Então, criamos uma campanha de financiamento colaborativo, com kits literários, opção de patrocínio e até a participação em uma antologia intitulada Identidades. Pra ajudar a editora, podem seguir a nossa campanha de colaboração através do https://benfeitoria.com/ajudemavenasabiertas onde existem algumas opções de valores e brindes. Lá, existem outras informações pertinentes ao projeto.

O nosso site é o www.venasabiertas.com.br

E aqui tem uma matéria que fala um pouquinho mais sobre nós: https://youtu.be/VH1JkjskW70


4. Para terminar, pode indicar um livro para os leitores da RevistaRia?

R - Eu indico o livro Pedra sobre Pedra, da Zainne Lima da Silva. Na verdade, eu indico todas as obras literárias escritas por ela, como seu livro de contos, Pequenas Ficções da Memória.

Zainne é escritora contemporânea, lá de Taboão da Serra, SP. Tem uma escrita muito forte e viva, fala de racismo, de apagamento histórico, de valores que devem ser atribuídos a corpos negros silenciados. É potente, certeira, crua. Tem uma autoridade na escrita que é impagável.


Karine Bassi é o pseudônimo de Karine Silva Oliveira, jovem periférica da extrema Zona Oeste de Belo Horizonte. Filha de José negro e Maria indigena, é escritora contemporânea marginal, feminista e artivista pelas causas sociais. Formada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), foi a primeira da família a ingressar numa universidade pública, contrariando as estatísticas e o excludente sistema de seleção. Bassi é articuladora e produtora cultural no ColetiVoz - coletivo responsável por desenvolver atividades sociais, culturais e de emancipação de territórios no Barreiro e regionais adjacentes-; é idealizadora e coordenadora da editora popular Venas Abiertas - editora construída no formato cooperativo e popular que prevê a produção e disseminação da literatura produzida por pessoas à margem do mercado editoral-; também produz e é atriz na companhia de teatro marginal periférico, Cia 5SÓ.

Suas últimas publicações são o romance Sob o Caminho uma Rajada de Ventos (venas abiertas 2020), e o livro de contos Reboco - vol 8. na coleção II, Mulherio das Letras (venas abiertas, 2020).

Bassi atua como educadora social, desenvolvendo diversos projetos na área de arte-educação e cultura de rua, tendo como projeto principal o De quebrada pra Quebrada, que objetiva e contribui para periferias saudáveis a partir de ações socioculturais, ambientais, de formação pessoal/profissional e de economia solidária.

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