Thais Fernandes, a escuta e a preocupação com o outro

por Caroline Joanello e Ian Uviedo

A realização de um documentário passa por processos muito próximos aos da literatura, especialmente a literatura de não-ficção. Como você vê essa aproximação? O que te preocupa enquanto autora dos teus documentários?

Interessante essa perspectiva. Eu de fato escrevo muito no meu processo de pensar narrativas fílmicas, mas talvez por enxergar a escrita como ferramenta e não suporte final do meu trabalho nunca tenha refletido profundamente sobre essa aproximação. Acho que tanto escrever quanto filmar partem de uma ideia de visualização - não no sentido físico de ver algo com os olhos, mas de enxergar com as ideias. Mas é o formato de entrega final dessas narrativas que determina nuances específicas. Eu escrevo muito antes de gravar pra tentar ver minhas histórias na cabeça, mas o cinema, por exemplo, me dá a possibilidade de dizer muitas coisas sem palavras. Eu também acho que escrever para si como processo de organização de ideias é diferente de escrever para outra pessoa ler. No meu entender, faz diferença pensar narrativas quando temos um interlocutor em perspectiva - e isso vale pra cinema, literatura ou qualquer outra forma de contar histórias.

Essa relação com o interlocutor, inclusive, é o cerne do meu processo criativo. Talvez por ter começado minha trajetória com uma graduação em jornalismo eu me preocupo muito com o diálogo. Eu sempre penso no meu público-alvo, nas pessoas que acho que podem se interessar ou se beneficiar da narrativa que estou produzindo na hora de determinar dispositivos e formatos dos meus trabalhos. Não que eu ache que exista um jeito "certo" ou "errado" de fazer filmes, é mesmo uma motivação pessoal. Talvez porque meus trabalhos (até então) tenham navegado por temáticas polêmicas ou militantes a preocupação com "para quem é essa narrativa?" é um dos pontos centrais pra mim na hora de pensar meus filmes.

Como é a sua relação com a sua espiritualidade?

Atualmente acho que posso dizer que acredito em mágica (risos). Piadas à parte, ando numa fase menos contestadora e mais observadora. Tem me interessado cada vez menos tentar explicar objetivamente o sentido da vida, e talvez por isso minha relação com rituais ou "acontecimentos mágicos" tem sido mais serena. Não tenho religião, e assim como a minha mãe me identifico com processos e formas de enxergar o mundo de várias vertentes culturais. Acho importante separar espiritualidade de religião. A primeira acho que expressa uma relação particular com isso que eu chamei de mágica, é muito específico de cada pessoa. Religião acho que traz uma ideia de regra ou valores fixos que não me interessa tanto viver.

Afinal, Quem é Deus é uma série documental que explora a relação das crianças com a espiritualidade em diversas culturas. Poderia nos contar um pouco de onde veio a ideia e quais foram os desafios e as maravilhas de realizar este trabalho?

A ideia na verdade foi uma proposta que veio do próprio edital, o que é incrível. O FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) preparou um edital para as TVs públicas que visava atender públicos e temáticas que a TV aberta não contemplava. Uma das faixas do projeto pedia uma série documental que abordasse religiosidade para o público infantil, e a partir disso nós propusemos o conceito de "Afinal, quem é Deus?".

Falar de religião é complexo em qualquer faixa etária, então desde o princípio eu tinha a preocupação de não fazer algo didático no sentido de afirmar conceitos. Eu enxergo religião numa perspectiva cultural, e por isso a ideia era conhecer vivências e não verdades absolutas. Entendi que uma forma de fazer isso com leveza e certa descontração era escutar as crianças.

É uma série com crianças e para crianças - mas que sinceramente eu acho que todo adulto deveria assistir. Cobrimos ao todo 11 crenças religiosas, e a estrutura de cada episódio foi pensada com os personagens. Eles escolhiam o que queriam mostrar e como, e trabalhamos a narrativa a partir disso. A preocupação central foi construir narrativas que respeitassem a vivência dos personagens, mas também não propagassem nenhum discurso de intolerância. E o mais incrível é que absolutamente nenhuma criança disse algo que pudesse ser interpretado como desrespeito ou noção de superioridade. Pelo contrário, grande parte delas tem noção que religiosidade é uma questão de ponto de vista. Por isso que eu digo que adultos também precisam assistir, muita gente esquece dessa noção de ponto de vista depois que fica grandinho.

O curta-metragem Fé foi selecionado para o 49º Festival de Cinema de Gramado, na categoria Curtas-Metragens Gaúchos. O que te impulsionou a contar esta história agora? E qual noção de fé é explorada no filme?

é um registro singelo da relação que eu tenho com a minha mãe. É um curtinha mesmo, tem 3 minutos, e a ideia foi captar uma conversa entre nós duas. Tive a minha fase de contestar crenças e renegar os pontos de vista da minha mãe, mas como eu disse antes tenho acreditado mais em mágica atualmente. Acho bonita a relação que a minha mãe tem com a espiritualidade e achei que valia o registro. Ela também é uma personagem maravilhosa que se dá muito bem com a câmera, então para além dos relatos sobre fé achei que mais pessoas deviam conhecer a "figuraça" que ela é.

Pode indicar para nossos leitores um livro e um filme ou série que tenham te ajudado a passar o confinamento?

Estou terminando de ler agora uma ficção científica maravilhosa que se chama Os Despossuídos, da Ursula K. Le Guin. É a história de dois planetas muito próximos com sistemas políticos diferentes que estão prestes a entrar em conflito. Uma clara alusão ao embate entre capitalismo e comunismo. Apesar de ter sido escrito na década de 70, acho que é bem atual pra pensar nossa desinformação e "achismos" sobre sistemas de poder. E filme, eu vou chover no molhado - quem me conhece sabe da minha admiração e amor pelo trabalho do Eduardo Coutinho. Então indico qualquer filme dele, porque acho um grande exercício de escuta (e estamos precisando reaprender a ouvir o outro).


Thais Fernandes (1984) é formada em jornalismo pela PUCRS. Desde 2007 trabalha como montadora e diretora de projetos audiovisuais para televisão e cinema. Focada em narrativas documentais, dirigiu os curtas Contrato de Amor (2013), Navegantes (2015) e Um Corpo Feminino (2018). Assina produção executiva, pesquisa e edição de vídeos do webdocumentário A Cidade Inventada (2014). Em 2020 lança Afinal, Quem é Deus?, sua primeira série de TV, e também seu primeiro longa - Portuñol - vencedor do prêmio de melhor longa-metragem gaúcho no 48º Festival de cinema de Gramado. Em 2021 se prepara para gravar Memórias de um Esclerosado, longa documental contemplado pelo Rumos Itaú Cultural. Thais atua também como educadora, ministrando cursos livres de documentário e introdução ao cinema.

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