A origem dos pastéis da Merça
Marcos Benuthe
Neto e filho de apreciadores do jogo, do carteado, de maneira alguma neguei a procedência.
Desde os memoráveis natais e anos novos em família. A primaiada em casa, dançando, se divertindo. Eu na expectativa, bolando estratégias para burlar a severa vigilância dos adultos ante o "templo sagrado" da jogatina, a sala do carteado.
Quase invisível, pelas beiradas, estrategicamente atrás da cadeira da mãe ou do pai. Local privilegiado para torcer e observar a personalidade dos jogadores, desnudas perante o campo de batalha, era um aprendizado, um privilégio.
Tio Issa, o mais escamoso, não por acaso era o dono do estiloso e desejado jogo de fichas utilizado, ele era tipo profissional, talentoso e implacável no jogo, treinado sistematicamente no salão de jogos do Clube Homs, na Av. Paulista, e no menor deslize dos amadores - emplacava!
Mas o jogo de cartas é um jogo de azar, então valia a pena a apaixonada torcida pelos meus velhos.
Logo a jogatina se espalhou pelas casas, pela nossa.
A mãe, plena em seu habitat, comandava satisfeitíssima a mesa ou as mesas semanais de pif-paf.
Eram tias, tios, amigos e amigas tentando a sorte até altas horas, entra e sai constante na Mercearia, subindo a escadinha, rumo à sala, era o cassino da Dona Hend.
Pra mim, era perfeito: Mercearia e jogatina, dia e noite, o mundo que pedi a Deus. No jogo, não havia espaço para o primo pirralho obcecado pela atividade, que me contestava respirando o mesmo ar.
Os preparativos
começavam logo cedo, sanduichinhos e acepipes diversos pra entreter os
jogadores, aí surgiu a ideia de preparar pasteizinhos pros convidados, os
bebuns descobriram e as bandejas começaram a descer a escadinha.
Na foto, ao fundo, da esquerda para direita, Xico Sá, Marcos Benuthe e Marçal Aquino, na inauguração da Ria Livraria, antes da pandemia, se perguntando a que horas a bandeja chegaria.
Marcos Benuthe, o Marquinhos: cinéfilo e espião de carteado, leitor inveterado, amante da boa música, grande amigo e inspiração para todas as horas. Já não bastasse, é formado em economia e foi responsável da Mercearia São Pedro enquanto polo de criação e encontros - recentemente reconhecida pela prefeitura de São Paulo como Patrimônio Cultural -, sempre agregando escritores, poetas, músicos, jornalistas e artistas num dos recantos mais boêmios da Vila Madalena. Em 2020, concebeu e fundou a RIA, a livraria que reúne os livros, muitas vezes raros, que sempre foram vendidos na Mercearia, mas agora de forma autônoma, organizada e a fim de selar novas parcerias.
Fotos: Jorge Filholini
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