só podia ser amor
Jéssica Balbino
ela podia jurar
que já tinha experimentado o amor. quase 25 anos, uma coleção de momentos
memoráveis, alguns namorados, uma namorada, muitas transas escondidas em
banheiros de balada, salas de aula e ônibus interestaduais. é claro que já
tinha amado. mas nunca tinha experimentado algo daquele jeito.
já tinha usado
LSD, cocaína e MD. mas o ecstasy veio quando encostou nele. parece exagero, mas
não é. ela jura. não conhece o Nirvana, mas talvez seja algo naquela direção.
se sentiu explodindo por dentro. em cada encontro, era como se estivesse se
consumindo.
pessoas assim, como o Raul - era esse o nome dele
- deveriam vir com a identificação de perigo,
sabe? daquelas tipo vidro de veneno em filme mudo do século passado. ele era do
tipo que vicia. mais que droga. afinal, Belina tinha passado ilesa por todas
aquelas experimentações, mas não conseguia sequer chegar no instante seguinte
sem gelar a barriga, ficar completamente úmida e respirar ofegante ao pensar
nele.
arte: Camila Kohn
suas amigas
atribuíam à saturno retrógrado, o signo de gêmeos cruzando o céu quando ela
veio ao mundo, quizila de xangô, carta errada no tarot...
menos ao amor. e ela jurava que era amor. ninguém faria ela viajar quase
400 km à noite para sentir a pele arrepiando daquela forma. quando estavam juntos,
sentia que estava num tipo de relação em que as pessoas vão se comendo. e não
conseguia deixá-lo. não havia carteira assinada, relógio de ponto, crachá com
nome da empresa, carro zero com prestações a serem quitadas e poesia que a
fizesse acreditar que conseguiria desgrudar seu corpo do dele.
claro que sentia
dor, especialmente quando ele atrelava isso ao próprio prazer, mas, era o preço
justo a ser pago pelos tijolos nas paredes internas, que ela erguera por tanto
tempo e que caíam, desmoronando a cada tapa.
só com ele havia
uma intensidade que estava não só na parceria, mas na forma como ele a olhava.
só ali, ele era capaz de conseguir tudo. logo ela, tão insubmissa, se
reconheceu totalmente entregue a ele. submetida a tudo que ele quisesse. tudo.
tudo mesmo. tanto que ela não conseguia verbalizar. respirava fundo e tentava
dizer a todos que gritava, sim, no escuro, mas
que nem sempre estava pedindo ajuda. às vezes, estava pedindo que ele a
mantivesse pra sempre ali, presa, amarrada, submissa. só assim conseguia gozar.
só assim conseguia ser feliz. o amor tem disso, né? o amor é isso.
não tinha como o
amor não ser os limites partidos que ela percorria com ele. eram muitas milhas
em alta velocidade. tanto por estradas, rotas aéreas, marítimas e um no corpo
do outro. ela duvidava ser possível se sentir assim novamente: inteira,
completa e ruindo, se partindo como uma cidade devastada por bombas. era
amor e não havia dúvidas.
foi amor quando
cruzaram o país. foi amor quando ela se sentia livre, ainda que presa debaixo
dele. foi amor quando experimentaram diferentes tipos de sabores. foi amor
quando ela entrava, nua, nas fogueiras que ele erguia. impossível ter tanto
fogo e não se queimar. e ele sabia fazer isso como ninguém: a encharcava de
gasolina e riscava inúmeros fósforos, criando incêndios em todos os poros.
quanto mais
queimava, mais ela queria. não tinha como não ser amor. eles subiram juntos em
todos os palcos. eles ergueram a voz. gritaram contra o sistema. de mãos dadas
com ele, e só de mãos dadas com ele, conseguia alcançar o que julgava ser a sensação de
saciedade. mesmo sendo açoitada. mesmo sentindo culpa. mesmo chorando escondida
quando ele olhava para o lado - qualquer lado que não fosse a direção dela. por
que ele não precisava dela na mesma fúria faminta que ela precisava dele?
ainda sim, ela
sentia quando ele a devorava. sentia, pedaço por pedaço da própria carne se
enroscando nos dentes dele. e sentia porque fazia o mesmo. sentia um apetite
singular ao lado dele. eles eram implacáveis juntos. imbatíveis. o mundo, em
sua imensidão, ficava pequeno. era possível dominá-lo com o amor que sentiam um
pelo outro. e isso era amor.
não havia prozac,
rivotril, vinho barato ou porre que a fizesse se distanciar da sensação
viciante que era sentir a mão dele em volta do pescoço dela. faltava o ar, mas
nada comparado com o que sentia quando estavam longe. ela era capaz de cruzar o
mundo. sim, o mundo inteiro, só para vê-lo recitar poesias em microfones
muitos. aleatórios. alheios. e para depois sentir as mãos dele em volta dela.
era possível sentir o ar faltar e saber que era para alimentá-lo.
longe dele era
difícil respirar. só ao lado de Raul é que Belina conseguiu habitar, de algum
modo, uma espécie de olimpo em que, a cada manhã, se sentiu parindo deuses. se
isso não for amor, o que será? quem mais, além dela, paria deuses?
ainda é capaz de lembrar de como sentiu o calor
do fogo ao se aproximar. estava com ele. com ele. repetia pra si, porque às
vezes, não conseguia acreditar. ainda se lembra de como ele cuidou dela quando
ela se sentiu mal. de como ele segurou a testa dela, assim, com a mão. de como
ele afastou os cabelos do rosto dela, com amor.
com ele, de mãos dadas, da beira daquele
precipício, não conseguia entender de onde vinham as labaredas, mas não
importava. talvez, fossem até mesmo das próprias entranhas. não importava. era
amor. e assim, deu o próximo passo. no escuro, apesar da luz do fogo. e caiu.
despencou numa espiral: cada vez mais escura,
cada vez mais sozinha, cada vez mais vertiginosa. como era o amor, não era?
demorou a perceber que estava sozinha. Raul havia ficado. na beira do precipício. deve ser isso que chamam de amor. Bonnie e Clyde, ela lembrava. deve ser isso que chamam de amor, mas ali, em queda livre, percebeu que não era. livre.
foto: João Paulo Ferreira
Jéssica Balbino é jornalista, mestre em comunicação e acredita que pode transformar o mundo através das narrativas. É criadora e editora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita. Curadora de eventos literários em todo país. Autora dos livros "Hip-Hop - A Cultura Marginal", "Traficando Conhecimento" e "gasolina & fósforo - meu corpo em chamas" (no prelo).
Camila Kohn é artista intermídia. Graduada em Artes Visuais pela Unesp, vive e trabalha em São Paulo. Entre pintura, colagem e instalação, tem como principal suporte o arranjo de objetos, criados e encontrados. Em 2018 apresentou a série de pinturas em grande formato Infiltrações e esteve na residência artística do grupo de pesquisa L.O.T.E. na Fundação Marcos Amaro (Itu, SP). Em 2019 e 2020 fez duas montagens de Três Relatos, a instalação itinerante em constante construção.
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