A neutralidade dos derrotados

Mário Bortolotto

O bairro onde eu me perdi em alguma noite de desvario, extravio e desnorteamento. O que esconde o prazer de não se localizar. Sempre me idealizei como um foragido do mundo correto, assertivo e facilmente identificável. Por isso o súbito regozijo em me perder naquele bairro desconhecido que abrigava perigos que eu ainda não podia vislumbrar por não ter marcado pontos no meu mapa manchado de vinho. A atração que sentia por não saber exatamente o que me atraía e o andar trôpego e inconsequente que me singularizava naquela noite fria e encantadora. Entrei em um bar. Nós sempre acabamos entrando em algum bar. Tudo era uma promessa a fim de construir uma lenda fajuta, porém sincera e as súplicas se sucederam a cada copo de uísque consumido. E a ruína se aproximava e eu dizia "Welcome, baby" a cada dose depositada sob o balcão. Lembro de uma garota que me dizia: "Você tem uma atração inexplicável por decadência". Talvez eu até soubesse explicar, mas não era a fim. Naquela noite estava exaurido e surpreendentemente feliz. As mulheres entendem o quão estrangeiro eu sou naquele lugar, mas definitivamente elas não estão interessadas. Preferem o cognoscível. Um dia desembarcaremos aos montes como uma gang de intrusos e bárbaros saqueando o bairro, mas agora sou apenas o batedor reconhecendo os pontos fracos do inimigo a fim de planejar o ataque. E quando o ataque se consumar, será com fúria e música estridente explodindo no tape deck empoeirado. Tudo é aceitável, menos o turismo dos fins de semana e dos feriados prolongados. O romance é bem vindo. Que um raio me fulmine se o romance não for uma opção almejada. Sou o herege que persevera no erro de não ir embora da igreja depois que os anjos já foram dormir. Os Beats eram amantes das grandes distâncias, das longas viagens sem destino definido, da impaciência com o se deixar estacionar. É impossível imaginar o incontrolável Neal Cassady em plena pandemia trancado em casa com mulher e filhos. Ou Gregory Corso, outro ser inquieto mofando atrás de uma janela que dá para os fundos de um estacionamento onde o sol nunca se manifesta. Gary Snyder sem se render a imensidão das florestas de sequoias gigantes. 83 metros de altura configurando opressão e poesia. Jack antes de adormecer resignado aos joelhos de sua mãe aferindo os quilômetros do tapete de sua sala em St. Petersburg. Tire o peixe do aquário e conte os minutos. Ken Kesey e Neal Cassady no lendário "Further" atravessando a América ao som do "Dead" distribuindo LSD para a malucada psicodélica. E então a estatura do forasteiro bêbado debruçado sob o balcão cresce assustadoramente como o pé dos feijões mágicos se contrapondo a silhueta quase indefinível e melancolicamente estática por baixo dessa luminária sombria que vislumbra o involuntariamente recluso e acabrunhado escritor em sua Barcalounger estofada socando desvairadamente o controle remoto da tv. Subitamente estaciono em uma partida de beisebol, talvez porque não entenda porra nenhuma de beisebol mas aprecie a sonoridade das palavra striker e pitcher. Também gosto das palavras "ouro", "incenso" e "mirra". Então imagino os reis magos entrando festivamente pela porta e anunciando o nascimento de um novo mundo onde os homens poderão voltar a andar livremente e se perder em bairros hostis e se embriagar em bares de balcões ensebados e mulheres indiferentes. Mas por hora só nos resta o desejo de que nos restituam as noites de sábado perdidas e as longas tardes de outono que nos foram cruelmente roubadas. 


foto: Renato Parada




Mário Bortolotto
é escritor, dramaturgo, poeta, ator, diretor do Grupo de Teatro "Cemitério de Automóveis" e vocalista da banda de rock "Saco de Ratos". E tá de saco cheio de ficar em casa. 

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