Rodrigo Qohen

Tendeu à tentação

Pise suavemente na terra, porque se não aprender a respeitá-la,
vai acumular detritos até acordar enterrado.


Pés que apressam como chumbo em direção
Um farol pisca giras e dá passeio à excursão

Pés de Basquiat ao pintar Moisés
Sandálias de Anchieta que vigia a Sé

Pés com ponto fraco n'Aqueles calcanhares frios
Chuta cu-de-ferro, alvo do papel que o colega atribuiu

Pede o dia abafado em beiço farto de cutículas
Pés ao fazer vinho,
               com unhas vermelhas, como joaninhas

Lábios inflamados de malícia
               duas malaguetas que enchem o balão
Bico de palhaço pisa enxada e beija o cabo
Cupim com fome, cresce o lombo com pássaros
Enquanto segue...
               os carimbos quadrados da perna-de-pau

Esculpi um túmulo aos pernetas,
                                 pois o passo é mais lento

Aquele que caça o espírito de sua sombra
tenta recuperar a coceira que assoprou ao vento


Arca estrelada

Cicatrizes da marionete ardem
Escorrem remelas de orvalho
                                    quando o céu-cérebro abre

Cortinas voam do varal,
             o palco lacrimoso em força naval

Há âncora que pesa as peças
Desce lenta quem não teme a queda

Funde o fim numa vela
Choram gatas escaldalosas na pupila da brecha
Pica-pau no pé-de-têmpora em crise epiléptica

               Dentro da arca afogada com céu estrelado
               dormem flechas famintas da carne

               Me permito partirem do arco
               Cometa com a ponta afiada
               Montaria no passeio do disparo


Venda de nuvens brilhantes

Afronta a porta das centelhas
              o chapéu protege do acaso
              faz volume na janela espiadeira

Assovia a canção da velha preta
E pousa a mala-jacaré de pés dobráveis

Chegou de viagem
Onde via jaguares nas nuvens
               e folhas noturnas caiam
               para escrever recados

Omite nas pupilas o rugido dos rubis
E guarda a vida no fundo dos barris

Viveu com ouro nos dentes
sopa de pedras no rio corrente
em cada ondinha brilhava o astro
a cada faísca: sorriso sem lastros

Sangue dum galo com a nuca arco-íris
Cavado na vala que o diabo dormiu
                    por dez mil larvas e travessias febris
Mulas seladas nas patas de bagagem
                        Tranças na crina, o ninho deu vida
                        Gemas tão lindas flutuando no rio

                Facas com lâminas a gemer de frio
                Vazante pelas vísceras
                Foi-se o casco do navio
                Lança a venda nos olhos ultravioletas
                              o outro violenta, é o anjo da passagem
                O rio Abaeté traz um diamante
                              Escudo vermelho afogado em vaidade

Veste nos dedos compridos,
Esconde o grão do marisco
Acena a lanterna do sonho sortido
E vê no reflexo...
                                          ...seu destino!

Vendeu a última joia em dia quente
              à moça que pairava no oriente
                                                        suplicando...
                                                                               sua alma


A flecha travessa

Mordida mascara por dentro
Espelhos cegos guiam feixes sangrentos
                             preenchendo as retinas da taça
                             pelo túnel infravermelho em furo preto

               Enlaça!
               Como escultor que parte a fenda
               e preenche o gozo pétreo dos músculos

Sonho com os morros que já foram fogo
Espremidos sob nuvens doutono

              Ondas pulverizam rochedos com espumas aéreas

             Mil gralhas assopradas na mágoa
             O caralho de Saturno em plena queda
             Cometa descende, germina em pérola

Pedradas...
A boca agridoce
Nas cinzas da brasa
Lúmen que eriça os pelos
Ao atravessar os dedos eretos,
                                          de fumaça

Boquiaberta como o talho
que tira saliva das bochechas

Inunda o frigorífico
com espadas frias
e joelhos bambos

Aço que incinera o olho
Vê por dentro de tesão
               A borboleta negra
               com penas seletas
               amolece em delicadas pétalas

                                                                    da flecha


Ruídos presos sob o galo
encerram a pedra quando quebra qualquer medo

A corda bêbada na cobra de veneno
                             é o piano em tanto pranto no casulo

Nesta dupla borboleta em artifício
              quando o cabo de pupunha é guarda-chuva

Põe-se a vida na mordida
Cada teco em cada dia
Sangra o copo-cicatriz

Pula o tigre e corta luz
É sentido à flor do ninho
Tempestade em colibri

... e o poema
nasce por um triz.


Flerte pendurado

Acordei contente
pela primeira vez

Estive morto e não houve choro.
Sem sentenças de consolo.

A corda contente com calor no pescoço
Assim, bem pertinho suspirando ao seu laço

RODRIGO QOHEN, SP. Poeta dos encontros magnéticos em flanagem pelas espumas que os copos tormentam. Autor de Entre a vertiginosinagem (2018), Dente Desperta (2019), entre outros. Todos livres, através das impressões da Baboon. Tem poemas na revista VIDRO, no blog Quimera Delirante e noutros lugares por aí. Logo mais, sai um novo livro, junto com a conta e a saideira.

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