Há de brotar asas dentro de nós

Resenha do livro Nem sinal de asas, de Marcela Dantés - por Euler Lopes

Há de brotar asas dentro de nós

Essa sina de bater asas pra existir. De tentar ser alguém com os pés no chão, mesmo que os olhos só veja o céu. Terminar o livro Nem Sinal de Asas (Patuá, 2020) da Marcela Dantés é ficar com a sensação de que de algum lugar dentro da gente vai brotar um par de penas, capazes de nos levar além . E para que esse par nasça, há de rasgar, há de doer.

Em que parte do corpo nascem as asas de uma anja? Embora todo mundo já tenha escutado que um anjo é um ser sem sexo, as representações dele estão quase sempre vinculadas ao masculino. Ao propor uma personagem Anja, Dantés nos faz pensar que esse ser puro e angelical, quando visto como mulher não está imune dos abusos e da solidão, sempre rodando a todas principalmente às mulheres pretas. A personagem de Dantés é extremamente humana, e talvez por isso, ela tenha asas invisíveis que crescem como nódulos prestes a transformá-la em múmia, em corpo cristalizado, em morte.

E se há um tema que toma as páginas do livro é o da Morte, que se anuncia tantas vezes à protagonista, mas que surge de forma silenciosa. E a grande inquietação proposta pela autora é essa, como um corpo morto pode ser esquecido dentro de um apartamento por cinco anos, sem que ninguém tenha se dado conta, sem que ninguém tenha sentido falta. E isso fala mais sobre os outros, sobre a gente, de como temos nos abandonado enquanto humanos, se é que ainda podemos nos utilizar desse conceito pra nos definir.

Anja é uma mulher preta que tem a pele marcada pra sempre por sua mãe que queria clarear sua cor e pra isso usou limão. Anja nasceu pra cuidar dos outros, da mãe, do gato chamado Rinoceronte, dos velhos verdes no local em que trabalhou durante quase vinte anos. Anja conviveu com poucas pessoas, dá pra contar nos dedos da mão suas relações, sempre sem profundidade. Anja ama o silêncio e a solidão. Na verdade, eu nem sei se ela ama, ou apenas se acostumou. Essa coisa de continuar batendo asas pra sobreviver.

O prédio onde Anja morou e morreu também é uma personagem importante dentro do livro. O espaço chama atenção dentro da narrativa por ser um antigo Hotel que guarda as memórias dos tempos gloriosos, mas que já está descascado e perdendo o dourado. Esse prédio simula tantos outros nos quais dividimos espaços com pessoas que são desconhecidas. E esse sentir o abandono do local em que vive se alastra por toda a cidade por onde Anja vive. E não há outra companhia a não ser esperar a Morte chegar. Não há outro tempo além de ver a doença fazer festa em seu corpo.

A escrita de Dantés é lírica, e poética ao ponto de poder falar sobre abandonos, solidão e morte sem que a gente sofra. A escolha de um narrador em terceira pessoa nos faz acessar a protagonista em pequenos voos e é muito inteligente como a escritora estrutura a narrativa, sem esconder nada, sem grandes efeitos de surpresa, sem viradas hollywoodianas, circundando uma vida com todos os detalhes que há nela. E é nos detalhes que a narração nos surpreende. Quem narra nos conta como quem olha também o avesso do bordado. Quem narra conta dos nós que é viver.

E a narração é invadida por uma voz, que vez ou outra marca a sua presença. Uma voz de uma personagem também invisível, o porteiro do prédio Hotel Lucas. Que invade as páginas com seus pensamentos, seu espanto, sua solidão. Que assim como invadiu o corpo da protagonista, invade seu apartamento, as páginas que voam entre nossas mãos. Um invisível que longe de ser um anjo, estando mais pra capeta, também compartilha com a protagonista a solidão do mundo.

Nem sinal de Asas é um romance que flui, flutua no ar. Uma história que se passa em qualquer lugar, diante de nossos olhos. Que cabe dentro da gente e nos faz perguntar onde vai brotar nossas asas. E se há de brotar.


Link para adquirir o livro: https://www.editorapatua.com.br/produto/228873/nem-sinal-de-asas-de-marcela-dantes


 Euler Lopes é escritore de Sergipe. Atua na direção e dramaturgia do Grupo de Teatro A Tua Lona desde 2010. Publicou os livros 10 afetos, +10 Afetos e Bolor. Foi contemplado no Jovens Dramaturgo (2013) e Edie (2016). Oferta cursos de escrita criativa pela Gotas de Mar Produções. É doutorande em Letras pela UFS, onde pesquisa violência na dramaturgia latino-americana. 

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