Berlim, 2006

Ivana Arruda Leite

Quando ele me mandou um zap convidando pra ir ao cinema eu estranhei. A gente era amigo, dormíamos no mesmo quarto, mas fora da concentração a gente quase não se encontrava. A parada dele era outra. Outra turma, outras baladas. O negócio dele era pagode, mulheres, altas orgias em privês de luxo. A minha era muito diferente.

- Te pego na sua casa às sete e meia.

Entrei no carro e me assustei com a beca do cara, um perfume da hora, cabelo bonito. Tudo isso pra ir ao cinema?, brinquei.

Ele ligou a Mercedes e saiu cantando pneu. Cinema de shopping. Já na garagem metemos um boné na cabeça e óculos escuros pra não sermos reconhecidos. Se a galera descobre que é a gente é uma aporrinhação. Autógrafos, selfs e adeus cinema. Por essas e outras, eu quase não saio de casa.

O filme contava a história de dois cowboys que se apaixonam um pelo outro. Os caras eram casados, tinham filhos, sogra, tudo normal, mas aconteceu o sexo, a paixão e foi uma tragédia. No final, um deles morre e outro fica sozinho, chorando, com a camisa do que morreu.

Cacete, por que esse cara me trouxe pra ver justo esse filme? Será que ele tá querendo tirar uma com a minha cara? Ele sabe que eu sou gay, na seleção muita gente sabe, mas eu fico na minha, nunca dei bandeira, sou o mais discreto possível e nunca tive caso com ninguém do futebol. Do jeito que esse cara é machão, só pode estar querendo zoar da minha cara. Se fizer qualquer gracinha, vai levar uma bifa na cara.

Saímos do cinema comentando o filme. Bonito, triste, interessante, só besteira. Nenhum dos dois falou nada que prestasse.

No caminho da minha casa, ele parou numa churrascaria da hora e perguntou se eu queria jantar. Tô morto de fome, e você? Eu topei e comecei a curtir a brincadeira.

Ele pediu um balde de cerveja e comeu feito um porco. As pessoas viam, acenavam, faziam sinal de longe. Na semana seguinte começava a Copa e a gente embarcava pra Alemanha. O Brasil era o favorito e nós dois, as grandes estrelas do time.

Ele ria, bebia e contava casos devorando o que pusesse no seu prato. Eu ria, bebia, mas não comi nem a metade do que ele comeu.

Na hora da conta, ele não me deixou botar a mão na carteira. Hoje é por minha conta! Ele já tinha pago o cinema e o estacionamento do shopping.

arte: Camila Assad

Na porta da minha casa, ele pediu pra subir. Disse que gostaria muito de conhecer minha casa.

Quando um cara lindo como ele te leva pra jantar, paga sua conta e pede pra subir na sua casa, você fica esperando o Sergio Malandro aparecer gritando "pegadinha do Malandro!".

Assim que entramos, ele sentou no sofá e pegou na minha mão. Depois pegou no meu pau e me disse que sempre quis trepar comigo. Agora eu tô pronto, falou. A gente já perdeu tempo demais.

Na Copa, apesar de sermos os favoritos, fomos eliminados nas quartas de final. Uma decepção pro país inteiro, menos pra mim. Aquela foi a melhor Copa de todos os tempos. Eu e meu cowboy em plena lua de mel. Nunca se viu uma dupla tão afinada no campo e na cama.

Ele é casado e vai continuar a vida dele. Nosso caso também vai continuar, e juramos que ninguém vai morrer por isso. 


Ivana Arruda Leite nasceu em 1951, em Araçatuba (SP); é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou quatro livros de contos: Histórias da Mulher do Fim do Século, Falo de Mulher e Ao homem que não me quis (reunidos na antologia Contos Reunidos) e Cachorros. Publicou ainda uma novela, Eu te darei o céu - e outras promessas dos anos 60, e três romances: Hotel Novo Mundo, Alameda Santos e Breve passeio pela história do homem. Tem um ebook no kindle: Taras e tripas. Recentemente publicou Poemas de muito longe, seu primeiro livro de poesias. É autora de livros infantis e infanto-juvenis.


Camila Assad é caipira de Presidente Prudente (SP). Estudou Arquitetura e Urbanismo. Escreve, traduz, desenha e recorta porque acredita enfaticamente no "failbetter". É autora de Cumulonimbus, Eu não consigo parar de morrer e Desterro, obra contemplada pelo ProAC na categoria criação literária. Adora pesquisar e criar tudo que se relacione às cidades e sua dinâmica caótica.

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