Regar a samambaia
Brisa
de Souza
B. mora no
terceiro andar de um apartamento não muito velho, não muito novo, não muito
bonito, nada feio. Na verdade, o apartamento de B. parecia bastante com tudo o
que estava sentindo nos últimos tempos: nem isso, nem aquilo - Cecília Meireles
entenderia.
Ano de 2020, pandemia: okay. Tudo no caos de sempre, só que cada dia pior. Já
fazia cento e dezessete dias que só saia para ir à farmácia renovar o estoque
de calmantes e ansiolíticos, e agora também estava pensando em aderir aos
relaxantes musculares, ou então para ir ao mercado porque gostava de se
torturar lembrando de quando podia sentir o cheiro das frutas e verduras e
folhas e legumes que escolhia. E toda paquera impossível e sem sentido se dava
na fila desses dois lugares. Ou no caminho, quando andava com os olhos atentos
em outros olhos.
Foi quando numa tarde por aí, voltando com compras pesadas, viu um casal entrar
no prédio da frente. Duas meninas de mãos dadas no Centro lhe chamaram atenção.
Não tinham medo, as duas? De serem ameaçadas, ofendidas, humilhadas? Não era um
bairro violento, mas sabe-se lá se a violência tem lugar, né. B. as observou
atentamente. Pararam de frente à porta de entrada, se ajudaram com as bolsas
(do mesmo mercado do qual ela tinha acabado de sair - opa!), acharam as chaves
e foram. Duas moças altas, morenas, uma loira artificial e cabelo Chanel, a
outra de cabelos castanhos e compridos, cacheados. Esbeltas, como bem diria sua
avó.
Subiu, chegou ao apartamento, borrifou álcool em todas as compras no hall,
tirou os sapatos e as roupas, pôs no cesto e correu para o banho - nova
tradição que talvez durasse a vida toda, melhor se acostumar.
Já no banheiro, ouviu seu namorado chegar e gritou para que ele também tirasse
a roupa e a esperasse sair do banho. Foi quando olhou pela janelinha ao lado da
pia e viu novamente uma das meninas. Como nunca havia notado?! Será que seu
namorado já tinha percebido isso? Tudo bem, fazia só seis meses que eles haviam
se mudado e decidido morar juntos, mas será que ele já sabia do romance do edifício
Central Bela-Vista? Romance além do deles, claro, que fluía a mil maravilhas,
invadido pelo fim do mundo.
arte: Poça, Raphael Morone
Foi aí que B. teve a ideia que mudaria todo seu isolamento acompanhado. Então saiu do banho, enxugou os cabelos e perguntou ao namorado: Queremos plantas no banheiro? E desde então, todos os dias, regam suas samambaias.
Brisa de Souza é paratiense da Ilha das
Cobras, mãe do Bento, antifascista e lgbt. Criadora e produtora em
multilinguagens, fotógrafa autoral desde 2013, já expôs individual e
coletivamente pela Casa da Cultura de Paraty, Sesc Paraty, Paraty em Foco
(Fotógrafas Brasileiras), FotoSururu (Maceió) e Galeria 27 (Atibaia); na área
de literatura atua com mediação de mesas literárias e clubes de livros, autora
de cinco fanzines digitais de poesia autoral, participou e organizou o fanzine
coletivo Vi_Vendo Paraty (distribuído de forma independente e gratuitamente na
FLIP 2018), da Coletânea Fuzuê (2020) e escreve sobre audiovisual brasileiro no
site Pelas Margens.
Produtora cultural desde 2015, idealizou e articulou o Slam de Quinta, História
na Rua e participou de equipes de produção em eventos para Sesc Paraty como
FLIPs 2018-2019, Palco Giratório 2019 e outros, e atualmente produz o XIV
Encontro de Ceramistas de Paraty.
Raphael Morone é santista e mora em Belo Horizonte desde 2015. Escreve, desenha, pinta e busca, em gestos não tão acabados, tocar o tempo outro. Está presente quase sempre no instagram.com/raphaelmorone.