Marta Neves e a literatura filha da mãe
entrevista exclusiva da artista Marta Neves, por Ian Uviedo
foto: acervo pessoal da artista
Literatura para você é...
Uma coisa essencial sem a qual a gente não
tem como se meter nos assuntos do mundo. A literatura faz assunto mesmo quando falta assunto, quer
dizer, mesmo quando a gente parece que já não tem ânimo de falar. Aí a
palavra surge, não qualquer palavra, mas aquela que gera, a que vem como
acontecimento.
Performance para você é...
Algo que eu uso no meu trabalho, mas não me
considero performer como os artistas que estudam fundo essa linguagem e testam
os limites do corpo até o talo, que pensam a performance como a guia do
trabalho. Acho que uso a performance do mesmo jeito como pinto em superfícies
diversas, até triviais, como panos de prato. Uso a pintura, mas não penso
dentro de ou para a pintura. Penso a performance assim, como um meio. Passeio
por linguagens, é uma errância. Gosto de errar.
Você definiria seu processo como...
Vagabundo. Eu vagabundeio por linguagens e
misturas, como disse antes. Não sou dedicada, não sou regularíssima, não tenho
a disciplina monástica dos grandes artistas. Acho que nasci pra baixinha.
Qual seu maior orgulho?
Nunca ter trabalhado em telemarketing.
Qual sua maior ambição?
Ter sossego, não viver com medo e susto, não ter de querer
o que querem pra mim.
O brasil é...
Uma mãe conservadora. A gente teve rixa com
ela a vida inteira, negou a mãe, até teve vontade de matar a dona, desdenhou,
quis desistir. Mas a gente se parece com essa mãe, tem ciúme dela, chora quando
pega o exame que ela fez e tem o laudo da morte. Dois dias antes da minha mãe
de sangue conservadora morrer, eu fui buscar esse envelope do fim no
laboratório em frente ao hospital. Foi um fracasso tão grande que até o jogo de
palavras da publicidade do lugar, que dizia uma frase açucarada, uma piaba de
pseudopoesia qualquer pra enganar os fregueses, me pegou de jeito. Chorei como
uma doida diante do slogan fofinho. No
caso da mãe Brasil, diferente da outra, não vai ter como ela morrer e a gente
sobreviver. Vamos ter que inverter tudo, vamos ter que parir a mãe, vamos ter
que jogar o tal envelope fatal fora.
Belo Horizonte é...
A filha da mãe.
Para você o futebol representa...
Um elemento fundamental da nossa cultura que
a gente não tem como esquecer, está em todo lugar, está na maravilhosa prosa de
João Antônio, na performance-jogo do Paulo Bruscky, nas brincadeiras dos
vizinhos do bar da Paula que eu frequentava antes da pandemia e que me ajudavam
a viver enquanto engolia o choro de filha da mãe Brasil e três barrigudinhas de
Bhrama a dez reais, o futebol está de alguma maneira na minha boca, nos meus palavrões,
mesmo se não penso nele, mesmo se não sei de campeonato nenhum que não
acompanho (gente, eu não sigo ninguém, não consigo ser dedicada a nada, não uso
fazer coleção, só ajuntamentos sem forma, só pileques). Estranhamente o futebol
está numa camisa do Atlético Mineiro que uso pra dormir, muito macia, e que
estou vestindo neste momento enquanto respondo você.
Um livro que você indicaria e o motivo...
Ah! Que maldade. Tem tanta coisa fina. Vou
mandar a letra de um que estava lendo aqui agorinha: Clara dos Anjos, do Lima Barreto. É impressionantemente visual, é
um Google Maps inteligente do
subúrbio, é uma pérola de investigação do comportamento das pessoas, suas
mixórdias, suas frustrações, sua ingenuidade, do pilantra acéfalo ao doutor
frustrado que envelhece mal, é um tratado sobre a merda racista que corrói
nosso país. Extremamente perto da vida, de uma quase simplicidade no jeito mais
cru de dizer, por exemplo, de um sujeito que bebia muito, um zero à esquerda
perdido na malandragem, que era, em resumo, um "ex-homem". E, ao mesmo tempo, é
uma prosa extremamente sofisticada.
Artistas atuais que te interessam...
Citei o Paulo Bruscky aí acima. É um cara
genial que transita por diversos meios de expressão, palavra, imagem,
performance, intervenções urbanas, instalações. Nunca se deve esquecer de um
excelente escritor que tem também um trabalho na poesia visual impecável, que é
o Sebastião Nunes. Sou muito fã do Marcelino Freire e sua escrita teatral,
parece que os personagens te chamam na tora ali na página, gritam, falam com
você. E é impossível a gente se esquecer da Conceição Evaristo - uma lição de
escrita sem confusão, papo reto, simples o suficiente para uma criança, um
jovem adolescente dar conta (eu acho Becos
da Memória uma aula mais que de literatura, de arte em geral), mas profunda
na sua conexão com a vida, com o sentido de viver e de criar. E tenho
acompanhado pelas redes o trabalho do artista múltiplo Daniel Minchoni - que é
um haikaísta, um sonetista com emojis, um produtor de poesia em gifs, um
desenhista da palavra.
Como você, que transita entre texto, imagem, performance e
outras linguagens, enxerga a arte multimídia hoje?
Acho que a arte é vira-lata, feita de misturas e sem
pedigree. Mas sem forçar a barra, sem querer que o sujeito faça alguma coisa
porque se diz que isso é contemporâneo. Contemporâneo é ter o olho aberto, ver
com os olhos livres, como dizia o Oswald de Andrade.
A transgressão para você é...
Ter humor num meio onde a sisudez das modas
de fora, das manias citacionistas acadêmicas pra sustentar discursos, editais e
statements dos artistas matam a
liberdade do desvio. Humor é desvio, é olhar agudo e também de esguelha, fora
do eixo, pro mundo. É muito mais que gargalhar. O riso pode até vir junto, é um
luxo.
Como a pandemia afetou sua escrita, que trata tanto sobre
situações do cotidiano das ruas e as relações entre as pessoas?
Afetou minha vida toda e me deu certa brochada em muitos
momentos. Mas a gente escreve das lembranças e do que cata do sertanejo
horroroso que o vizinho de apê escuta, escreve do que sobra de vida
quando vai visitar o pai surdo e compra comida pra ele numa loja onde todas as
funcionárias são inevitavelmente tristes, uniformizadas e iguais como tomadas
de três pinos, a gente faz história com os cachorros que te olham, pensando em
mascar sua bunda enquanto você digita um conto torto no celular, a gente dá um
jeito, inventa, mente, ou quase. Como diria o Marcelino Freire numa frase de
ouro lá na capa do Bagageiro: Juro que tudo o que eu
escrevo é verdadeiro. O mentiroso sou eu.
A Academia TransLiterária é...
Uma potência em Belo Horizonte que me
ensinou sobre a vida, sobre dar conta de mim junto com outras pessoas que me
acolhem. É uma nova forma de enxergar as coisas em volta. Quando a gente se
mete com pessoas que antes não pareciam pertencer ao mundo - porque é assim, a
gente cis acha que elas não existem, a gente não vê e não crê que não vê -,
descobrimos que a vida é muito maior, mais
complicada também, mas mais colorida do que se pensava, não tem mais volta. A Academia TransLiterária, mais que um
coletivo de arte da cidade, é um jeito de estar no mundo que me acolheu e eu
aprendi a acolher.
O Brasil precisa de...
Humor, poesia, educação, saúde, SUS, gente
trans, preta, diversa, colorida, indígena, de todo canto, sem frescura e sem
mitificação, com liberdade de inventar e meter as caras pra banir a caretice e
a mania de verdade que nos assolou pela direita, mas que talvez tenhamos também
deixado acontecer enquanto nos achávamos sabidos demais. O Brasil precisa de
ouvidos. Tem falação de sobra e pouca gente pra escutar.
Belo Horizonte precisa de...
Tudo isso aí também.Tem que deixar de ser
uma senhora tão cristã e ser mais puta, mais preta, mais periferia, mais
moradora de rua. Temos na cidade um bairro famoso, montado neste horizonte já
comido pela mineração, com shopping fino, gente branca e prédios chiques, que
nasceu e cresceu às custas da destruição do ambiente, uma verdadeira droga do
ponto de vista ecológico, climático, mas é um dos frutos podres da maravilha
imobiliária que vai se espalhando por aqui há décadas. Se BH continuar nesse
fino e caro, concretado e excludente, vai morrer como filha da mãe, da mãe
Brasil.
Marta
Neves é...
Uma eterna candidata a artista, também uma
filha da mãe.
Marta Neves é artista plástica e escritora em eterno estado de treino. Faz parte do coletivo de arte Academia TransLiterária, que publicou coletânea de textos de integrantes e pessoas convidadas em 2019. Trabalha no cruzamento entre palavra e imagem há vários anos (seu projeto NÃO IDEIA, apresentado na 31ª Bienal de São Paulo, por exemplo, estrutura-se como microcontos). Bordados, faixas de rua, fotografias, performances, livros de imagens e palavras compõem seus processos e se espalham em mostras e eventos no Brasil e fora dele. Publica textos em redes sociais e periódicos, além de participar de saraus, a exemplo do Sarau da Diversidade na Balada Literária de 2020.
Leia também
- A Copa & a vida, Sérgio Rodrigues
- Cartão amarelo ou gol contra, JoMaKa
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- A peleja, Marta Neves
- Camiseta, Morgana Kretzmann
Entrevista
Vê Só