As coisas não funcionam mesmo

Julia Codo

Por que você não comprou logo uma mala nova, disse minha mãe. Na Europa essas coisas são mais baratas. Juntas empurramos toda a bagagem até um canto da sala. A mala está boa, eu disse, o problema são as rodas, que se desgastam logo, ressecam. Ela limpou as mãos nas coxas e me olhou meio que sem olhar, torcendo a boca para um dos lados, como faz quando está pensando: então levamos no Constantino, ele troca o rolamento.

A figura de um homenzinho calvo com sobrancelhas muito grossas me veio à mente e foi como se um estranho tivesse ocupado o meu quarto, deitado na cama. Precisei franzir um pouco a testa e aos poucos a memória foi se reconstituindo. Meu avô adorava o Constantino, dono da Sapataria Cativante. Passei anos sem saber o significado da palavra "cativante", achava que era o sobrenome do Constantino. Por um instante, concebi a imagem do que acreditava ser um Constantino envelhecido como aquela sala: sobrancelha espessíssima muito branca, pele como as rodinhas da mala.

Mas, sim, antes, eu me lembro, havia uma planta em cima dessa cristaleira. A verdade é que a sala não parecia ter mudado muito, mas senti uma certa estranheza ao vê-la. Talvez a casa e eu sofrêssemos de anacronismo, como se eu não devesse mais estar ali, não naquele momento. Tudo igual, mas com menos cor, como se uma bacia de alvejante tivesse sido jogada ali, o que tornava o ambiente bem pouco cativante.

Acho que o problema é a ausência de plantas. Antes elas estavam por todos os lados, graças à minha avó. Quase a vejo ali andando de um cômodo pro outro vestindo um avental, uma tesoura de poda nas mãos, a cozinha cheirando a carne de porco. Lembro particularmente de uma planta que dava flores vermelhas: para mim eram corações. Girei o corpo em volta de mim mesma e a sala então pareceu uma freira sem roupa.

É aquele matagal dela, era o que meu avô praguejava quando a casa se infestava de mosquitos. Às vezes ele também se referia à sala como "lá no Amazonas", como se houvesse uma fronteira dividindo os ambientes. Minha mãe tinha prazer em implicar com qualquer coisa que pertencesse àquele lugar e àqueles pais, dizia que a sala cheirava a defunto. Eu achava que tinha cheiro de flor mesmo, ou de açúcar.

arte: Enigma do Esquecimento, Suyan de Melo

E houve uma vez em que ninguém me via, então aproveitei para brincar com as flores vermelhas. Apertava uma delas com as mãos para sentir bem o cheiro - não cheirava a nada -, então ela se descolou do ramo e saiu na minha mão. Minha mãe tinha gritado comigo de manhã e gritaria de novo se soubesse da mutilação da planta. Coloquei a flor no bolso e olhei para a porta do corredor para ter certeza de que não era vista. Passei o dedo nas pétalas e o toque me agradou. Olhei a flor mais uma vez e a enfiei na boca, mastiguei, engoli, uma espécie de vingança contra todos os gritos. Senti os pedaços ardendo na garganta e depois no estômago. Tive medo, bebi água. Mais tarde fui ao banheiro e assisti com alívio à merda vermelha ir embora com a descarga.

Meu avô estava de pé do lado da janela, os cabelos sem o brilho da brilhantina, como eu nunca tinha visto. Eu disse "oi, vô" e o abracei. Ele me abraçou de volta, mas com pouca força e me olhou como se procurasse alguém dentro de mim. Estava parado de pé na frente da janela e seu corpo estava perfeitamente dividido entre luz e sombra. O rosto foi o que mais me chamou atenção, como se expressasse sentimentos opostos: o lado com luz, incompreensão; o lado sem luz, convicção. Por que ele está sem sapatos, perguntei. A enfermeira logo chegou com mocassins nas mãos, modelo que ele jamais escolheria, mas que devia facilitar a operação. As barras das calças estavam dobradas e dava para ver as varizes subindo pelos calcanhares.

Eu só queria tomar um banho e dormir. O banheiro da suíte onde me instalaram tem o tamanho de um dormitório e me pareceu o fundo de uma piscina, talvez pelo mofo entre os azulejos e nas beiradas do espelho. Foi difícil abrir e fechar o boxe, a porta não corria bem. A torneira do chuveiro também deu trabalho para abrir. Fechei os olhos e esperei pela fluidez da água, mas vieram poucos pingos. Como pode uma casa tão grande e com tantos quartos e banheiros ter um chuveiro com tão poucos pingos? Lavei os cabelos com irritação, devo ter demorado uns vinte minutos para conseguir tirar o condicionador. Tive vontade de chorar, mas me acalmei e fechei a torneira. O problema é que quando fui sair a porta do boxe não abria de jeito nenhum. Puxei mais uma vez e nada. Uma terceira vez. Mais enguiçada que a rodinha da mala. Não sei o que fiz para merecer tanto emperramento. Na quarta, joguei o corpo todo para trás e escorreguei no piso molhado, uma pancada bem no meio do glúteo direito. Sentei e apertei os olhos até a dor abrandar, respirei fundo, chorei só umas lágrimas. Encostei a testa no joelho, contei até dez, depois até vinte, pensei que devia cantar algo para me acalmar, não sei por que me veio à mente Detalhes, do Roberto Carlos, talvez por culpa da casa ou do banheiro. Pensei em gritar por socorro e senti vergonha. O banheiro fica dentro do quarto, não vão me escutar. Tentei mais uma vez, não é possível, não sou tão fraca. Devia ter trazido uma garrafa de cachaça ou de whisky para o banheiro. Ou ter tomado banho com o celular na saboneteira. Agora nem posso alcançar a toalha. O que é que eu vim fazer aqui? Estou com frio. Por que é que não colocam logo um vidro nessa janela? Lá fora estão usando uma britadeira. Não entendo como ainda não inventaram algo para substituir a britadeira, nem Bolsonaro inventaria algo tão rudimentar. Posso pedir ajuda aos operários. Vão me ver pelada. Em quem eles votaram nas últimas eleições? E a musiquinha do caminhão de gás, eu me lembro. Por que ainda existe caminhão de gás? Como é que ninguém vem perguntar se eu estou bem? Meu avô não deixaria isso acontecer se estivesse consciente. Depois se queixam de que eu venho pouco ao Brasil. Vou tomar banho de novo. Quando é o próximo vôo para Londres? Eu vou conseguir chegar ao aeroporto? Vou morrer de inanição no boxe do banheiro? Quantos dias uma pessoa pode viver sem comida? Um último puxão, toda a violência do mundo.

A porta correu só um pouco e eu consegui passar pelo vão. Saí do banheiro o mais rápido que pude e dei de cara com a minha mãe. Nos assustamos ao mesmo tempo. Por que você não veio antes - disse - eu estava presa, a porta do boxe não abria. Ela disse que pensava que eu estava tomando banho. Eu tomei uns três banhos, foi o que eu respondi segurando o choro. Podia ter morrido ali, batido a cabeça. Ela me olhou como se eu fosse criança e disse, ajeitando um botão da blusa: como é que eu ia saber, a porta do quarto estava fechada, você podia estar descansando. Aqui as coisas não funcionam mesmo. Vou pedir para alguém ver esse boxe. Vem comer.


Julia Codo é formada em Letras pela USP e pós-graduada em Editoração e Jornalismo Cultural pela Universidade de Roma "La Sapienza". Editora, escritora e roteirista, participou da antologia de contos Leia Mulheres (Pólen Livros, 2019).

foto: Gina Campos


Suyan de Melo nasceu em Araranguá, na primavera de 1979. É bacharel em Direito e servidora da justiça catarinense. Produz literatura de textos curtos (contos, crônicas, poemas) há aproximadamente vinte anos. Desde 2017 publica aos sábados, principalmente crônicas, no Jornal O Correio, de Laguna (onde reside desde 2008). Tem um livro infantil, ainda inédito. Trabalha atualmente em sua primeira prosa longa. Tem um carinho muito especial pela linguagem do colagismo, pois cria colagens desde a infância e adolescência.

Sobre o trabalho
Título: Enigma do Esquecimento
Ano: 2014
Técnica: Colagem sobre eucatex

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