Tesuda

Ana Pacheco

Imagina só: eu peladinha deitada na maca, abrindo com minhas próprias nadadeiras os pequenos lábios da xoxota pra veterinária examinar. Ela com a cabeçona lá, quase entrando de tão perto. Eu tinha dito que ficaria mais à vontade se eu mesma pudesse afastar a pele. Ela foi fofa. Claro, aqui a gente só faz o que você autorizar. Você é quem manda. Por mais entregue que eu estivesse naquela posição de barriga pra cima, tinha que desgrudar a pele, porque os pequenos lábios permaneciam juntos, fazendo bico.

Não é que eu não tivesse notado. Reparava na das outras bôtas, diferentes na cor, no formato, principalmente no tamanho. Até a textura parecia ser mais delicada. A minha é extrovertida, motivo suficiente para as senhoras representantes da Liga das Bôtas Casadas me julgarem como se eu carregasse entre as pernas um sinal de caráter. Cresceu pra fora, como um bago, elas dizem. E daí? Me fizeram sentir vergonha por muitos anos. Mas agora não se trata só disso. Se me cancelam, perco os clientes e o meio de vida.

No começo era só trollagem, os machos riam sem deixar de me frequentar. Pelo contrário: um contava pro outro que contava pro outro, até que fiquei com uma carteira enorme de clientes. Gozavam e riam, riam e gozavam. As bôtas foram ficando irritadas. Então, quando troquei a timidez pela vontade de me exibir, aí elas surtaram de vez. Não sei o que fazia mais sucesso, o debrum ou o pino quase do tamanho de um mini pinto (só que muito melhor que um pinto). Comecei a cobrar mais e ainda assim tinha o dobro, o triplo da procura. Aí a pressão delas aumentou: me chamavam de machista, de feminista, de descarada, jogavam peixe podre na minha quebrada, nenhum filhote podia mais nadar com os meus filhotes. Foi quando os botos caíram nessa conversa mole que elas espalharam sobre o feitiço da minha xota. Fiquei com medo, como eu disse, medo de ser cancelada e não poder mais viver do meu corpo.

A doutora é das que acham que Afrodite nasceu da espuma do pau de Urano. Lamenta meu incômodo com o que a natureza me deu, enquanto insiste na cirurgia. Não tenho culpa, foram seus pais que a fizeram assim. A ninfoplastia é um procedimento simples, em poucas semanas você vai ter uma xoxota de menina. Os dentes dela brilham como porta de geladeira. Me diga, quanto vale uma bacurinha de menina num corpo experiente? Conta a história de Kali, a tesuda. Pra explicar o poder de atração da deusa, ao qual nenhum ser ou energia que se aproxime escapam, compara-a com um buraco negro. Cair na sua é só questão de tempo; aliás, o tempo e o não-tempo pertencem ao seu domínio. Orum. Não somos deusas mas temos tecnologia ao seu dispor.

Fico me examinando com o espelhinho lá na outra margem do rio, pro meu companheiro não sofrer o meu sofrimento. Não fosse minha tez rósea, o marrom dos lábios lá embaixo apareceria menos. A pele marrom arroxeada, cheia de vasos sanguíneos. Não sei por que pequenos lábios tão grandes. Flácida como uma velha de molho num rio quente - nem acredito que pensei isso de mim. Não sou eu, são elas falando dentro da minha cabeça. Dizem que sou cheia de dobras, como se eu tivesse a intenção de esconder alguma coisa bem ali. Logo eu. A doutora tirou uma foto e no mesmo instante projetou a minha boceta ao lado de uma pepeca clarinha, novinha, quase sem lábios. Olha aqui. O que você acha? A cirurgia é baba, ela disse. Com uma varinha de fada eu ponho um filtro mágico e seu porta-joias vai parecer o de uma garotinha.

Normalmente me importo mais com os outros do que comigo. Mesmo este chapéu, é pra não assustar ninguém com o furo no topo da cabeça. Não quero submetê-los pelo medo. O furo, porém, nunca foi motivo de ameaça. Todas as bôtas têm o mesmo buraco. Já o da pobre Iara fica na nuca, não há chapéu que disfarce. Por isso só pode amar de frente. Em compensação, aposto que a boceta da Uiara é clara, pequena, recolhidinha - sem estas orelhas de elefante balançando -, simétrica como uma concha, contrastando com o monstro no cangote. Ela pega muita gente.

Tô ligada que a veterinária é uma frustrada, mulher de zoológico. Mas os idiotas gostam dos peitões inflados, da bunda dura, da ostra branquela, e a gente precisa vender minha tchorna pra deixar um rio melhor pros filhotes. Não tô confiando de bobeira, eu vi nos olhos dela: como se a minha boceta fosse a sua chance de se tornar uma cirurgiã-celebridade. No mínimo ela pensa que vai melhorar a natureza. Que é uma artista. Que o corpo dela é menos vendido que o meu.

***

Graças a Deus você entende. Pra você não tenho que ficar me justificando. Você me conhece. Eu nunca teria pensado nisso só pela minha cabeça. Se tô pensando em operar é porque preciso dar a volta por cima. Tô pensando na gente. Eu nunca deixaria você. Nunca. Nem se ela me prometesse trinta xerecas novinhas. Como aquela máscara indígena das visões, a que tem olhos no corpo todo, além dos dois na cabeça. Só que no meu caso iam ser buracos róseos. Com pele macia - já pensou? Eu ia dar pra muitos caras ao mesmo tempo. A bôta fodona. Pensa no dinheiro. Na magia do lance. Na trapaça. A gente ainda vai melhorar de vida.

Acredita que a doutora me perguntou por que eu trabalho? Por que não fico nadando e comendo, e pronto. Só faltou perguntar por que eu não fico só cagando no rio. Pra que eu quero ganhar dinheiro se ninguém tá doente na família? Olha ali, ela disse. Tá vendo aquelas mulheres? Fila de espera. O procedimento é quase indolor e tá na crista da onda. Uns 27, 30 meses. Primeiro ela oferece a cirurgia pra depois falar da fila e a gente querer fazer no consultório particular dela. No público, só aceitam em caso de comorbidades, ou quando não se consegue mais viver bem no próprio corpo. Não sabe dizer como o meu motivo seria avaliado.

A primeira ali, olha, a bôta gorda, tem um netinho com câncer. Ninguém ia com ela, por causa da pupuca murcha. Então ela inventou de comer o cu dos caras com o bicão. Foi um sucesso. Trabalhava, ajudava no tratamento do botinho e ainda ficava inteira. Mas aí chegou a madame cheia de ideia. Ofereceu a grana toda da cirurgia do neto, cash, se ela cortasse a boceta para feitiço. A pobre não tinha como negar, era a cura do menino. Cortou na própria carne. Vendeu pra ela. Toma. Vê se usa do jeito certo. Não vá querer mal de mulher ou de bôta com a minha boceta. Agora tá aí na fila, na esperança de reconstruir as partes.

A outra, atrás dela, quer conseguir um trabalho melhor. O chefe do puteiro chic disse para todas as colegas ouvirem: com esse bocetão, você os intimida. Enjaulou a bôta meio período. Das 22h às 03h da manhã ela fica presa, mostrando o sexo, dentro de uma jaula posta bem na entrada, como antigamente a mulher barbada ficava de chamariz no circo. Mas foder mesmo, chegar perto, sozinho com ela no quarto, ninguém quer. Então decidiu se operar.

Tá vendo a outra, a golfinha: acha que o maridão tem caso com uma peixa mais nova porque a preciosa dela envelheceu. Nunca que ia conseguir entrar na fila por causa de uma coisa dessas. Então rasgou a entrada da vagina com uma navalha, riscou um rio de sangue até o períneo. Ela urra toda vez pra fazer as necessidades. A região não cicatriza por excesso de movimento. Sepá vão passá-la na frente da reconstituição da boceta da outra, que já não sangra, a do netinho com câncer.

A Bôta

Agora eles se afastam. Não pelo formato, nem pelo tamanho; nem pela cor marrom roxeada, o botão quase um pênisinho, a baba espessa escorrendo pelo buracão, o pingente durinho, o pistilo meio curvo, salpicado de pelos gosmentos - tudo isso era ímã pra eles. Dizem que o formato, a cor, o volume assustam, chamando pra dentro, que poucos têm coragem, assim como não têm coragem de dizer seus nomes diante da bocarra da foz das águas. Mas eu sei que não é nada disso. Eles têm medo de ser cancelados também, por isso quase ninguém vem mais.

O Boto

Cheirosíssima. Infinitamente rainha das bocetas todas. Aposto que as xoxotas que a doutora loira te mostrou não têm o it da sua. Você tá querendo biscoito, eu dou.

A sua, meu amor, a sua. Dispensa vaselina, gel íntimo, manteiga, óleos lipídicos, lubrificantes graxos, ky jontex prudence, sebo bovino, mocotó, gordura de baleia, banha de porco, lanolina, óleo de mamona, de colza, de palma, de oliva. Abraça o cabo de guarda-chuva deles fazendo a compressão exata, um capuz quentinho, o gorro do diabo, uma gelatina onde dá pra entrar sem se sentir num oco. Treme conforme eles se mexem, devagarinho, rápido, como a música manda. A vida que arrasa e contamina. Exala infinitas notas de feromônios. O gás que embala o balancê. Os terapeutas sexuais, os massagistas tântricos nas pousadas de charme desses idiotas de duas patas, eles iam pirar em você. Misturas de compostos voláteis, C14H24O2 = 224 u. e ácidos carboxílicos. Dá tesão até na língua. A gente um dia vai abrir o nosso próprio puteiro lá na bacia do Araguaia.


Ana Paula Pacheco é escritora e professora de Teoria Literária na USP. Publicou narrativas em várias revistas, como Piauí, Revista E (Sesc), Ruído Manifesto, n-1, Zero, entre outras, além do livro de contos A Casa Deles (Nankin Ed., 2009) e do infantojuvenil Ponha-se no seu lugar!, recém-saído pela Coleção Vaga-lume (Ática, 2020). Fez pós-doutorado em 2017 na Université Paris-Nanterre sobre cinema e romance pós-1968. Está terminando um novo livro de ficção.   

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