estudo para paisagens instáveis

Ian Uviedo

Então eu estava no Rio de Janeiro.

Na madrugada anterior, a cidade de Alepo havia sido bombardeada. Tenho um sonho na memória, uma imagem que vislumbrei no ônibus entre as luzes da estrada e a noite: um viaduto. A leitura de poesia estava marcada para as seis horas, e seria num bar acoplado ao jóquei. Como o ônibus tivesse se precipitado, cheguei muito antes de todos, antes mesmo do check-in no hotel Santa Clara, e sendo minha única bagagem uma valise cheia de poemas e livros, fui andando do centro até o Jardim Botânico.

Já estive no Rio algumas vezes, e sempre fiz o possível para me perder por lá. Descia na Botafogo quando tinha que descer na Jardim de Alah, trocava ruas e ia parar à sombra vertical do Memorial do Carmo, e sempre me espantei como podia haver uma pedra enorme, coberta de musgo e mata, entre dois prédios. Tudo porque acreditava que o único jeito de conhecer uma cidade é se perdendo nela.

Mais tarde eu estaria sentado com desconhecidos sob os Arcos da Lapa, bebendo e me chateando, mas agora, diante do bar onde por enquanto ninguém me conhecia, mas que depois me teria como "atração", vi que o lugar era mais chique do que eu esperava. Decepcionante.

Entrei e dei meu nome ao mocinho no balcão. Ele me analisou se segurando para não rir, ou para não vomitar: eu usava uma camisa social branca com as mangas amarrotadas à altura do cotovelo, jeans, sapatos rasgados e tinha um paletó de veludo preto empoleirado no braço junto a valise. E, claro, estava todo suado. Ah, se ele soubesse que sou o artista e que usarei essas mesmas roupas no palco, começaria a chorar agora mesmo.

- Sinto muito, senhor (insira aqui uma variação esdrúxula do meu sobrenome), mas não encontrei sua reserva.

Bom, ao inferno com isso, aporto num boteco qualquer e volto depois. Fui saindo, mas um sujeito com cara de pelicano se interpôs entre meus propósitos, segurando-me o braço e sorrindo:

- Perdão, senhor (insira outra), houve um engano. Os organizadores da leitura devem estar chegando a qualquer momento, por isso ainda não nos passaram a lista. Mas, por favor, escolha um lugar que já vamos atendê-lo. Tudo por conta da casa, é claro.

Dei uma olhada lá fora. A maior parte das mesas estava ocupada pela diretoria do projac, gente que consome camarão e champanhe às duas da tarde. Lá longe dava pra ver o cristo. Apesar do calor, certa brisa marítima arejava tudo. Entre os cristãos e seu deus, os cavalos. Peguei o lugar no canto mais próximo da pista. Os jóqueis treinavam, parece.

Eu já tinha visto as máquinas de chope no mezanino, e quando o mocinho veio com o cardápio, disse a ele para interrompermos as bobagens ali mesmo.

- Um chope. Mais nada.

Então eu estava no Rio de Janeiro com um copo de chope na minha frente, esperando para ler poemas a um público pagante, observando puros-sangue trotando no sol, e com o gosto melancólico e adocicado de ser a pessoa errada na hora certa.

Não tinha como não lembrar de Henry Chinaski. É cafona, e eu já sabia disso então, mas contra as circunstâncias, o que se pode fazer?, a vida imita a arte, a arte imita a vida, a vida imita a vida e, principalmente, a arte imita a arte.

A vida limita a arte, isso sim.

Naquele momento, a cidade de Alepo começava a divisar, entre a névoa da desgraça e dos destroços, a possibilidade de vingança. O sonho se tornava nítido outra vez, trazido pela umidade do ar da tarde: o viaduto, e debaixo dele, uma árvore de frutos estranhos, de carne retorcida, enormes e brilhantes na noite (como as luzes da estrada, talvez?). A luz dos frutos ofuscava a escuridão, tudo de tão branco me fazia acordar. E o Rio já estava chegando.

Pedi mais um chope. Ao perguntar as horas pro mocinho, calculei que os outros poetas só chegariam dali uma hora. Os cavalos passavam correndo e eu tentava entender que todas as decisões que eu tinha feito na vida, todos os caminhos que escolhi, ignorando os milhares outros possíveis, cada pessoa com quem me relacionei, fosse no amor ou no ódio, cada lágrima que verti e cada sorriso surpreendido no espelho, tudo isso resultava naquele instante, e os cavalos passavam correndo. Os cavalos passavam correndo, e pensei em cada pessoa que deixei sozinha, nos momentos que fui egoísta e prepotente, em como as coisas poderiam ter sido diferentes, e os cavalos passavam correndo. Os cavalos passavam correndo, e vi os rostos de quem me perdoou, dos que teriam orgulho, daqueles que algum dia acreditaram, e os cavalos passavam correndo. Os cavalos passavam correndo, e lembrei da primeira vez que fui ao Rio de Janeiro, junto com a família, quando a poesia se resumia a garranchos num caderno azul, e a briga colossal que tive com meu pai, a pessoa que mais acreditou em mim, os gritos, as ofensas, a dor, a manhã dolorida na orla de Copacabana, sozinho no nascer do sol, a vontade de entrar no mar e desaparecer pra sempre, a certeza de que aquela alvorada vinha para extinguir tanto, os olhos fechados buscando me confundir com a areia e as bicicletas, o vento e o remorso, as calçadas e os prédios, a vida e o nada, o nada, e os cavalos passavam correndo.

arte: Camila Kohn  

Mais tarde, não tão mais tarde - antes dos Arcos, isso é certo - , li meus poemas para sessenta pessoas que uivaram, aplaudiram e depois ofereceram uísque e cigarros. Optei por ler sentado, com uma taça de vinho na mesinha, tentando simular seriedade, mas claro que os poemas não ajudavam. Por comparação, os outros poetas pareciam épicos. Nessas leituras, por conta da timidez, tento abstrair a situação e me concentrar nas palavras, e dessa vez o que ajudou foi um cavalo que tinha visto mais cedo (isso fazia de mim um poeta ípico?).

Buscando me desembaraçar da melancolia, pedi outro copo e fui dar uma volta perto de onde ficavam os estábulos.

Tinha um jóquei paramentando seu animal. Naturalmente, o homem era pequeno, mas havia nos seus gestos e em sua expressão algo que lhe impingia grandiosidade. Um artista, à sua maneira. Isso estava no jeito que puxava as correias, instalava o freio nos dentes do cavalo, tudo feito com iguais calma e firmeza.

O cavalo, um alazão puro-sangue, tinha o dorso largo e reto, a espalda profunda e inclinada, e músculos parecendo cordas. As patas longas indicavam que não era um animal para corridas curtas. Sua pelagem castanho-brilhante e toda a postura incidiam disciplina. Era a harmonia sobre quatro patas. Me aproximei do jóquei.

- Que horas vocês correm, perguntei.

- O primeiro start será às seis. Apareça pra ver.

- Não posso, tenho uma leitura de poesia.

O homem pareceu não entender, talvez porque já fosse um poeta.

As leituras seriam no porão do restaurante. Embora eu soubesse ser só imaginação, li os poemas tendo certeza de que o puro-sangue trotava acima da minha cabeça, e eu podia ouvi-lo. Seu galope era como um sonho. Ou uma bomba. Propus um brinde para a multidão. E os cavalos passavam correndo.


são paulo. 2020      


foto: Camila Kohn

Ian Uviedo é artista, escritor e livreiro na Ria.
Faz parte do grupo de criação coletiva e experimentações gráficas La Tosca, que participa de feiras de arte impressa e publicações no Brasil e exterior, pela qual publicou Recusas (2019), Mal Contato (2019), Os Gatos (2018), Mapa de la Inseguridad (2018) Assovio (2018) e Apocalipses (2018), que variam entre contos, fotografia experimental, desenho e livro de artista. Também integrou as antologias Submarino: relatos rápidos para leitores de fôlego (2018), e Submarino 2 (2019), ambas organizadas pelo escritor e jornalista Ronaldo Bressane. Em 2019 publicou sua primeira novela: Éter - Novela de Narcolepsia, pela paraguaya Editora de Los Bugres.

Camila Kohn é artista intermídia. Graduada em Artes Visuais pela Unesp, vive e trabalha em São Paulo. Entre pintura, colagem e instalação, tem como principal suporte o arranjo de objetos, criados e encontrados. Em 2018 apresentou a série de pinturas em grande formato Infiltrações e esteve na residência artística do grupo de pesquisa L.O.T.E. na Fundação Marcos Amaro (Itu, SP). Em 2019 e 2020 fez duas montagens de Três Relatos, a instalação itinerante em constante construção. 

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