Ian Uviedo
Porque
é impossível flanar de bicicleta, porque bicicleta é cinema
[e caminhar seja outra coisa
consideramos
absurdo que a ciência ainda não tenha resolvido o problema
do
esquecimento de guarda-chuvas ao redor do mundo.
Isso
você vai ter que imaginar, mas
as
conversas não tocam mais, do outro só interessa o sangue, a pele
e
sejam sombrinhas ou umbrellas de segurança, é impressionante que nada sirva
para
[nos proteger das
chuvas desses dias.
Solto
dos pulmões a fumaça do cigarro numa garrafa vazia e meto-lhe a rolha
e
contra a luz vejo padrões barrocos
- ou nuvens, feito aqueles galeões engarrafados que víamos nas prateleiras do litoral, mas engarrafada não a embarcação, e sim a tempestade -
ponho copos d'água sobre
lanternas, vultos pintam as paredes
e isto é invenção.
Mesmo com o calor, pedir um
café duplo.
Dizer que se cansa
facilmente com problemas alheios.
Mesmo com chuva, ir de
bicicleta.
Dizer que do outro só
interessa o sangue, o osso, a pele.
E isto também é invenção.
que hoje seja aniversário daquele poeta
norte-americano de quem li um trecho no seu casamento
embora você não saiba
ou a data em que combinamos de ler o que
vínhamos escrevendo
embora você não saiba
agora busco casacos e maçãs de outono
a térmica ao lado do vinho chileno
e me deflagro em pedaços me aniquilo na
memória
do teu gesto inútil.
onde quer que eu esteja oh i see the city
lights
lembrando que não celebramos o nascimento
dos objetos mas lamentamos sua morte
embora você não saiba da saudade que
tenho de te erguer um altar
com o que você esquecia em meu quarto.
então chega de cavar expressões em
densidade
fingir que aviões não caem todas as
tardes
como o último fiel de uma religião
extinta
ou feito quem deixa de fumar e prossegue
limpando os cinzeiros
do que vou fazer emerge quem fui
e volto à rotina do café, da insatisfação
do instante luminoso e ignorado.
te disse que não aguentava criar imagens
nenhum grupo ou família me pertence
e há prazer naquilo que desprezo e temo
o desejo
sobretudo isso.
da forma como for
oh i see
the city lights
embora você não saiba.
1.
menos do que eu mesmo
antes que anoiteça
teu casaco, um livro atirado
entre as cobertas
do que eu costumava ser
feito todos os outros
com medo de avião
feito todos os outros
com um gosto amargo
feito todos os outros
eu pensava em você
2.
exercícios de natação
em desalinho com o sonho
dos pulmões
espalmar na água
a tensão destes dias
sim
os últimos anos
sim
a rotina
velhas variações
primeira lição:
jamais deixar de respirar
3.
continuo pensando em você
andando pela avenida iluminada
preparando aulas
moendo café
lembrando cenas
limpando os óculos
sonhando alto
continuo pensando em você
em expansão constante
até que a água confunda tudo
e todos nós estejamos prontos
para ir embora e te deixar a sós
com o que realmente importa
em
pouco tempo
isto
também terá acabado
você
disse ter medo de algo
e
eu não lembro o que era
eu
tinha motivos para rir e temer
que
não imagino quais fossem.
hoje
sou
a cinza de uma brasa de álcool
um
camelo atravessando o incêndio
de
dias indefinidos.
que
seja voltar para casa
com
um girassol na tarde sombria
que
seja uma maçã molhada
partida
a faca
entre
edredons brancos e risadas da pele
depois
do sexo.
em
pouco tempo
serei
para você menos
que
estes cigarros, estes livros
garrafas
chilenas ou a máquina de lavar
terei
para você a mesma aderência
dos
suéteres
do
baque da janela contra o vento
do
abridor de latas
do
ruído do disco quando a música
há
muito que terminou.
mas
agora
é
a hora da cobaia
de
entrar para a sua galeria
feito
uma peça de barro
com
detalhes vagamente mais sofisticados
que
a anterior
agora
há
a graça das obsessões
canetas
japonesas na praça no fim da rua.
mesmo
que eu seja uma estação clandestina
ou
socada entre o inverno e o outono
ou
apagada por onde o metrô nunca passa
ainda
que ríssemos por pouco
e
os cabelos seguissem crescendo selvagens
a
condenação
a
frustração
o
desconsolo
viriam
feito uma multa
contra
nossa felicidade.
e
pagamos em corpos pretendentes
seduções
reais, sem experiência
sem
a ciência que nos une
neste
apartamento
no
lado oeste da maior cidade
do
continente.
um
país talvez maior que este quarto
trilhas
de bicicleta pela terra dos monstros
quem
sabe nos libertariam
das
notícias dos nossos jornais
onde
matam onças e meninos.
todos
os dias balbuciam
e
são reações uns dos outros.
agora
você me ama
agora
você me abraça
agora
a cama naufraga com doçura
o
nada é genuíno.
mas
o mundo é esta sala e o tempo foi feito
para
despedidas ao sol e elegias escritas
em
tinta azul. é o que prevejo.
e
juro que desta vez tentarei falhar melhor
desta
vez tentarei sentir saudades.
Foto: Jeanne Callegari
IAN UVIEDO é escritor e artista. Autor de Éter - Novela de Narcolepsia (Ed. de Los Bugres, 2019). De forma independente, publicou uma dúzia de zines que variam entre contos, poesia, fotografia experimental e livro de artista. Já levou suas performances poéticas para diversos palcos do país e se apresentou ao lado de artistas de renome, como Juçara Marçal e Arrigo Barnabé. É editor da revista eletrônica RevistaRia. Faz experimentos audiovisuais, e em 2020 teve uma série de videopoemas publicados na revista Saccades, da Califórnia. Também em 2020, foi indicado pela revista Forbes como uma das personalidades de maior destaque da cena literária e poética brasileira com menos de 30 anos. Vive em São Paulo.