Nada dentro de tudo

Alex Xavier

Para passar o tempo, você pega um livro aleatório na prateleira de autoajuda de uma livraria. Sim, este livro que está lendo agora. Ele fala sobre você. Não apenas, claro. Se focasse em um único adolescente no corpo de um quarentão, que usa bermuda com quatro bolsos e camisa de banda de rock extinta há duas décadas, a capa não estamparia um selo de best-seller nem estaria exposta em uma gôndola bem na entrada da loja. Mas o título é "1001 formas de se fazer nada antes de morrer" e isso combina com a sua fase atual. Talvez tenha acabado de sair de um emprego ao qual ficou preso por anos, acomodado. Foi demitido, se aposentou ou largou tudo em um ataque de histeria, assustando colegas e obrigando seu chefe a chamar os seguranças para te escoltarem até a calçada enquanto, aos berros, você insistia que a cadeira do escritório fodeu com a sua lombar. Hipoteticamente falando. Quem sabe ganhou um bom dinheiro, como uma herança, prêmio de loteria, indenização ou qualquer renda que garanta um período de desapego laboral. Até o seguro-desemprego funciona, por um curto intervalo, se outra pessoa, como um cônjuge, ocupar o lugar de provedor da casa, só para não perder de vista o vencimento dos boletos, ainda que esfregue isso na sua cara, todas as manhãs, ao te acordar dizendo que preparou o café e enviou um anúncio de emprego "promissor" para o seu e-mail. Jogue-o na lixeira, igual aos anteriores, e procure não se desviar do objetivo nesse momento: o nada. Por quanto tempo? Não importa. Um dia livre, uma semana de folga, um mês de férias, um ano sabático. Ora, que seja uma vida inteira coçando o saco, caso demonstre talento suficiente para postergar. Ganhe uma barriga e seja especialista em empurrar tudo com ela. Capaz de já ter experiência nesse setor, outras temporadas bancando a estátua-viva, um monumento ao homem que aguarda. Mas fazer nada não é tão fácil assim. Preencher as horas na agenda quando não há compromissos, nem um boteco com amigos, todos atarefados demais, é escolher a melhor vaga em um estacionamento vazio. A maioria anda em círculos para sempre. Até um cachorro ou gato, animais domésticos em geral, precisam de rotina, nem que seja para diferenciar a hora de comer, de brincar, de receber carinho, de passear e de dormir. Aliás, dormir não conta. Ao ler a orelha do livro, você descobre que o tempo de repouso não preencherá as lacunas do tempo em atividade. Precisa se planejar melhor ou, quando menos espera, vai se pegar sendo produtivo. O que leva a um engano muito comum: fazer nada não significa arrumar um passatempo. Qualquer cobaia de laboratório consegue se dedicar a um hobby, desenvolver novas habilidades, repeti-las à exaustão e acreditar que, de fato, gostaria de fazer daquilo o seu propósito em vida. Suponhamos que, ainda criança, você rabiscasse os cantos das apostilas escolares, sem levar a sério, e, agora, carente de um contracheque todo os meses, queira transformar em plano B esse talento lúdico, alvo do elogio de uma professora de artes, da qual nem se lembra o nome. Investir com atraso no aprimoramento de uma área abandonada décadas atrás não vai construir um desvio de volta a essa estrada paralela. Em vez de fazer nada, apenas faria algo diferente. E do ponto zero, que, apesar de ser a versão matemática do nada, está passível de se tornar alguma coisa ao lado de outros números. O nada que você procura é um símbolo indefinível, o não-ser, o vácuo. Se somos aquilo que fazemos, ao fazer nada deixamos de existir. Siga uma das primeiras orientações deste manual e observe com atenção o que ocorre a sua volta. Além de continuar desocupado, pode identificar outros procrastinadores e seguir seus passos. O barbudo com a pilha de livros clássicos, por exemplo. Jamais lerá tudo aquilo, não chegará nem na metade. Mas pode rechear seus horários com a ilusão do conhecimento. Há também a jovem de tranças, folheando, sem critério, guias de turismo, de trilhas andinas a museus europeus, passando por cruzeiros caribenhos. Planejar viagens, sem a necessidade de realizá-las, leva as pessoas a sonharem acordadas e a pegarem carona nos ponteiros do relógio. Quando perceberem, cada uma delas terá dado a volta no planeta sem sair do lugar, apenas acompanhando o movimento de rotação dele. O senhor careca entregou ao caixa um livro de mesa sobre jardinagem. Não pediu para presente. As mãos macias entregam que nunca as sujou com terra, jamais fez uso de ferramentas rudimentares. Tudo bem que, dependendo da planta, ela se cuide sozinha. O mais provável, porém, é esse homem se tornar um jardineiro medíocre. E fazer mal feito ainda se encaixa no conceito de fazer alguma coisa. Tem a turma que constrói trecos inúteis, outra que se reúne para discutir temas com os quais ninguém se importa. Se você tem o perfil de que manda a alma ou o universo se mexerem enquanto disfarça a preguiça, pode meditar, que tal? Basta optar por um estilo com poucas ações ritualísticas, mantras e posições muito complexas. Prefira aqueles que comecem com a frase "esvazie sua mente". Nem tente se sintonizar com o eu, a Terra, a natureza, outros planos. Alcançar um grau elevado de consciência pode trazer epifanias em cascata e você vai querer fazer algo a respeito. Também tem a opção da terapia, se o lance do autoconhecimento não te demandar muito. Ainda mais se, em vez de apontar uma depressão - que poderia até preencher seu vazio de pura química -, a psicóloga insinuar uma crise de meia-idade, só porque confessou a vontade de comprar um barco à vela, fabricar a própria cerveja e aprender a tocar saxofone, tudo ao mesmo tempo. Ela vai citar Lacan, Kant, Sartre, se aprofundar demais. E cavar seu âmago, com certeza, não é fazer nada. Você precisa de algo sem tanto comprometimento, que te ajude a ganhar horas, dias, meses, sem esperar retorno nenhum. Item mil e um do livro "1001 maneiras de se fazer nada antes de morrer". Escreva. Há todo um período de ócio justificável que antecede a escrita - com a possibilidade de extensão para dentro dela se você for também seu único leitor. Escreva para si mesmo. Sobre qualquer coisa. Sobre coisa alguma. Escreva este mesmo livro. Então, poderá morrer, sugado pelo seu próprio vazio.

Foto: Ricardo Dias

ALEX XAVIER é um jornalista refugiado na ficção. Autor do livro de contos "O Teatro da Rotina" (2018, Patuá), participou das coletâneas "Não Pretendia Criar Discórdia" (2017, Giostri), "Eros Ex Machina" (2018, Alink), "Era de Aquária" (2019, Oito e Meio), "Ruínas" (2020, Patuá), "Isolamento" (2020, Caos e Letras), "Kriptovisões do Futuro" (2020, Alink), e "Mundo-Vertigem" (2020, Alink). Integrante do coletivo Discórdia, produz zines para feiras de publicações independentes, ministra oficinas de escrita criativa e colaborou com revistas como Gueto, Subversa, Vacatussa, Intempestiva, Torquato, Submarino e agagê 80.

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