A concha

Daniela Valverde

Gostava de me sentar à tardinha no batente da porta e olhar para o horizonte. Sentia saudades de onde eu vim, e para diminuir a tristeza imaginava que depois da linha que dividia o céu da terra começava o mar. Apertava os olhos até que a cena tremeluzisse feito água, como uma miragem daquelas que vi nos livros que falavam de desertos e camelos.

A água era tão rara por aquelas bandas que a gente se punha mesmo a ter visões. Na maior parte do tempo, tudo em volta era um tijolo de poeira vermelha, e respirar ardia e sangrava, como se inalássemos muito perto da chama de uma vela.

Pela janela da cozinha eu me distraía naquele mundo de terra vermelha sem verde nenhum e o dia se arrastava sem a algazarra das meninas. A faca sibilava na pedra esperando a carne, que quase não tinha, mas quando era de ser, cortava na direção correta, separando em bifes finos. O barulho crepitante do óleo na frigideira era bom. O bife chiando e se contorcendo todo.

Aí vinham as meninas correndo com suas perninhas empoeiradas para dentro de casa e eu indo ao encontro delas, perguntando da escola.

Depois era o bife no prato sem resistir à faca e Lúcio mastigando alto com uma pressa sem motivo, olhando para a tv, praguejando por causa do chiado. Lucimar, a minha mais velha, com suas mãozinhas dava tapas na carcaça, mexia na antena. Não tinha muito sucesso.

A casa era tudo que a gente tinha. Mas tinha também os ratos que passeavam pela cumeeira. Acontecia de algum desabar em cima da cama de madrugada. Lúcio se levantava xingando, atacava o bicho a vassouradas, arremessando o corpo inerte como uma bola no pátio. O bicho fedia no lixo por dias seguidos e parecia que a casa estava cercada por uma nuvem.

As crianças reclamavam dos mosquiteiros que grudavam nas pernas, o espaço na cama era pequeno e elas se esquivavam a noite toda do tecido que arranhava. Eu apalpava em busca de algum buraco por onde as muriçocas pudessem passar, mas elas acabavam entrando por alguma fenda invisível.

A primeira vez que aconteceu já era noite e fazia um calor dos diabos, a chuva naquele ano foi embora cedo. Quando chegou em cem dias parei de contar. Debaixo do travesseiro eu guardava uma concha lustrosa, que cabia na palma da minha mão. Eu a encostava no ouvido e fechava os olhos, escutando o mar preso ali dentro. Quase podia sentir o cheiro da maresia, de tanto que meu pensamento me levava de volta para casa.

Penso que foi assim, de tanto ruminar, que aquilo começou a se apropriar do meu corpo, primeiro por uma saliva espessa e salgada que eu cuspia, formando uma poça espumosa no chão. Depois foi se criando na pele uma crosta laminada e crespa que se descolava quando eu me movia, formando um rastro branco. Fui falar com Lúcio, mas não encontrava palavra. O sal tomava conta da minha boca, da minha pele, os olhos choravam pequenos cristais.

À noite ele quis me procurar, eu já recendia a alga, peixe e ostra. No outro dia me decidi: enterrei a concha no quintal, como quem se livra de uma vergonha. 

DANIELA VALVERDE escreve em Brasília com saudades do mar. 

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