A fátua da burritsia

Jotabê Medeiros

Com a morte do poeta Lawrence Ferlinghetti, aos 101 anos, ressurgiu um debate sobre se ele era ou não o último beatnik (não era, Gary Snyder é, e segue vivo e atuante, mas Ferlinghetti viveu tanto e contribuiu de tal forma para alargar a consciência do seu tempo que é também correto pensar que ele foi o último beat). Mas, afinal, que diferença faz? Não há último beatnik, porque essa tocha já foi passada adiante muitas vezes - Roberto Piva, Mautner, Antonio Bivar, Mário Bortolotto, Pepe Escobar: uma infinidade de autores foi inoculada com o vírus da contracultura desde os anos 1950.

Chamei meu livro mais recente de O Último Pau de Arara, um ensaio memorialístico sobre meu pai, com o qual descemos num pau de arara em 1965 da Paraíba para o Sul, e é evidente que meu pai não era o último pau de arara - essa saga de migração desesperada segue ativa e hoje assume formas múltiplas, foi apenas uma imagem simbólica da qual lancei mão para recolocar um tema em circulação.

Mas é penoso constatar que estão de fato em desaparição algumas coisas que eram referenciais na sociedade moderna. Não digo isso apenas pela extinção física de grandes, pelas mortes de autores importantes como Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna ou Ferlinghetti . É que enxergo como momentaneamente fragilizadas (pela imperiosidade do isolamento e pelo combate encarnado) algumas das mais fortes instâncias de confrontação intelectual, daquele clássico debate com base no argumento, na dialética intelectual, ou pela expressividade do artefato artístico, do discurso da arte.

A sociedade que se articulava em volta da mediação da arte e da força da argumentação comparativa parece estar em xeque, e isso coincide com o exato momento em que crescem as ondas de intolerância e no Brasil se consolida a nova elite da burritsia acoplada à extrema direita bolsonarista. Caboclamente, eu vou usar aqui a palavra burritsia em oposição à palavra intelligentsia (de origem latina e russa), cuja associação se tornou comum a partir da obra literária de Ivan Turguêniev (1818-1883). Segundo o historiador Carlos Vieira, Turguêniev partiu de uma observação profunda da elite intelectual russa, revelando os conflitos entre as gerações de letrados para cunhar intelligentsia.

Carlos Vieira observou que Dimitri, personagem do romance Rudin (1856), foi o anteparo conceitual da intelligentsia: homem culto, orador eloquente, nacionalista e defensor apaixonado de mudanças sociais. Portadora de uma pulsão de renovação, da modernidade, da civilidade, e defensora do progresso do povo e da nação, a intelligentsia, absorvida com profundidade pelas culturas russa e francesa, bateu-se pelo desenvolvimento e disseminação da cultura e da valorização do trabalho intelectual.

Os bolsonaristas de gabinete criaram o oposto desse conceito: como não têm produção alguma, nenhum elemento que se assemelhe a um retrospecto produtivo (e que permitisse a confrontação de ideias), eles assumem a missão anti civilizatória de seu patrão como uma fátua sagrada, um híbrido de entreguismo pleno, aniquilação da cultura e desprezo para com o trabalho intelectual. Para triunfar de forma análoga aos aiatolás, eles criam inimigos imaginários que deverão ser combatidos com a exceção da verdade e a aplicação da força, ao qual chamam genericamente de "a esquerda". Nessa sanha, são capazes de incluir num só pacote Bob Dylan e Anthony Burgess, Vanessa Redgrave e Roger Waters, Chico Buarque e Caetano Veloso, Waltércio Caldas e Teresa Cristina. Ou seja: tudo.

Tropa iletrada e de referências obscurantistas, esse grupo aposta na alienação como arma. O epígono da burritsia é, evidentemente, o astrólogo aposentado Olavo de Carvalho, mas eles também têm delegado a sua "missão" a clérigos auxiliares, personagens-satélites como o insano chanceler Ernesto Araújo ou o sanfoneiro de homilia Gilson Machado. Abrigam-se no aparato de Estado com o aríete de um extremismo que rosna e ameaça, e que se ajoelha e brada pelo seu líder máximo em churrascaria-rodízio, como se estivessem numa mesquita do Taliban (só faltam dar tiros para o alto, mas ainda não chegamos ao fim disso).

De repente, passou a parecer muito remoto aquele mundo que ficava impactado com os parangolés de Hélio Oiticica, que debatia a sacralidade num filme de Godard, que estremecia aos pés de um discurso de Glauber ou de uma canção de Raul Seixas. Não sei em que ponto isso aconteceu, mas num mundo que normaliza os desastres gigantescos, as tragédias dos Rios Doces, os morticínios em série, 250 mil mortos em uma pandemia, talvez a difusão dessa corrente de nulidade tenha um pouco a ver com a própria inação do nosso tempo. Talvez seja a hora de começar a seguir Flávio de Carvalho em sua caminhada de saia pelo centro de São Paulo novamente, e reativar homeopaticamente tudo que construímos de liberalizante, reinventar a cosmogonia da nossa epopeia humanística.


Jotabê Medeiros é jornalista, trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP, é editor de cultura da CartaCapital e publicou os livros O Bisbilhoteiro das Galáxias (Lazuli), Belchior - Apenas um rapaz latino-americano e Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia Livros). 

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