Cadela de trás pra frente
Alice Queiroz
arte: Pico do Jaraguá, Paula Toni
Cheguei sozinha em casa. Um cachorro latiu ao me ver passar, assustada e infeliz, rumo ao metrô Praça da Árvore. E segui meu caminho. Dei uma corridinha. Ele estava me encarando enquanto eu me afastava. Mesmo assim, a uma distância segura, olhei para trás. Sabia que não estava sendo seguida. Andei ainda mais rápido.
- Ei.
Ainda assim ele soprava mais uma vez. Com frio e cansada. Sem bunda, sem peito, sem nada. Enfiado em um moletom preto três números e um gênero acima do meu. Algo se despedaçou dentro do meu corpo ainda menor e mais miserável.
- Psiu.
Ouvi o sopro me atingir novamente. Não havia o que fazer. Sem dinheiro, sem bilhete, sem celular. Tinha apenas a garrafa de água de plástico, um maço barato de cigarros, a chave de casa e um isqueiro. A outra metade batia forte. Uma metade do meu coração parou.
- Psiu.
Assim que me virei, andando rapidamente na tentativa de ignorar o porte musculoso e o movimento ostensivo ao fechar o zíper da calça, ele soprou em voz alta. O último, no começo do meu caminho de volta. Felizmente de costas. Peguei três em pleno ato. Como se a cidade fosse uma privada a céu aberto. Aproveitando a quase completa ausência de mulheres, viram latas de cerveja e urinam pelos cantos sem o menor pudor. Descobri que durante essas horas insones os homens viram cachorros. Do metrô Vergueiro até o Saúde e do metrô Saúde até o Vergueiro. Seis horas de caminhada. Madrugada.
Alice Queiroz nasceu em São Paulo. É bacharela em Letras pela USP e já trabalhou em duas livrarias: editora unesp e Martins Fontes. Em 2020, publicou na germina, revista eletrônica de literatura & arte, e na antologia poética Clausura, organizada por Rosana Piccolo. Escreve no blog de literatura erótica tudoseinadatenho.com.