Camiseta
Morgana Kretzmann
1.
Desde pequena dou muito trabalho.
Não trabalho para os outros.
Trabalho para mim mesma na tentativa de não dar trabalho para os outros.
arte: Camila Kohn
2.
A infância vive em mim
no espaço
um cômodo de lembranças
histórias que hesitam em aparecer
mas viajam comigo por todos os lugares.
3.
Com o meu pai aos quatro anos:
Viva o Grêmio! Goooooooooooooooooooolll.
Filha, tu só grita gol quando o Grêmio faz um gol, não quando o outro time faz gol.
Ah, tá.
4.
Com meu pai aos cinco anos:
Vai Grêmio! Vaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiii... CHUTA PRO GOOOOOLLLLL.
Não, filha. O jogo tem que ficar como tá. Se não o pai não ganha na Loto.
Ah, tá.
Gol do colorado, pai.
(silêncio)
5.
Carrego um corpo comigo
a menina que não morreu.
Visto sua pele suada com feridas
cascas vermelhas de sangue seco.
6.
Adolescente em um bar assistindo à final
da Libertadores sem meu pai:
Caralho, Dinho. Perder uma bola dessas? Derruba o cara no chão.
Credo, amiga! Larga meu braço. Deixou ele todo melecado com essas mãos suadas.
Desculpa. Tô aflita!
7.
Desde pequena dou muito trabalho para
mim mesma tentando não dar trabalho para os outros.
8.
Adulta na chácara assistindo a final da
Copa do Brasil com meu pai:
Vai Luan! Passa essa bola. Passa.
Nein, nein! Renato tem que dar um pito nesse guri.
O Everton livre do lado dele. É inacreditável, pai.
Porque tá esfregando as mãos na blusa, filha?
Ah, suadas.
Suar é bom. Pessoas saudáveis suam.
O senhor sabe como é...
Dá próxima vez que alguém reclamar diz que é seu corpo trabalhando por você e não o contrário.
9.
Pandemia 2020. Chamada de vídeo:
Tá feliz que o Grêmio ganhou o Gaúchão, pai?
Mas é claro!
Mesmo tento perdido o jogo?
Nem fala, olha minha filha, cheguei até a suar nas mãos. Mas escanteei com uma geladinha.
Rimos.
Morgana Kretzmann é escritora, roteirista, atriz e produtora cultural. Lançou seu primeiro livro, "Ao Pó" (Editora Pautá) em março de 2020. Idealizou e produziu projetos como "Universo Bortolotto" em Porto Alegre e o quadro "Papo de Camarim" na TVE (TV Educativa). Nasceu e se criou no interior profundo do Rio Grande do Sul, na beira do Rio Uruguai. Vive em São Paulo.
foto: Marcos Benuthe
Camila Kohn é artista intermídia. Graduada em Artes Visuais pela Unesp, vive e trabalha em São Paulo. Entre pintura, colagem e instalação, tem como principal suporte o arranjo de objetos, criados e encontrados. Em 2018 apresentou a série de pinturas em grande formato Infiltrações e esteve na residência artística do grupo de pesquisa L.O.T.E. na Fundação Marcos Amaro (Itu, SP). Em 2019 e 2020 fez duas montagens de Três Relatos, a instalação itinerante em constante construção.
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