Batom Cor de Néon

Jhonatan Bào

Desembarquei na estação de trem por volta das três-e-meia da tarde, com os olhos cansados de se demorarem em corpos e relvas, que de comum só possuíam o concreto de suas armações incontornáveis. Olhos cansados também de se deterem no modo como eram indiferentes às brisas, tintas e carícias os muros e homens que ostentavam suas ausências de cores, a fim de ocultar suas ausências de vida. Sacudi a saia para desgrudar os farelos de amendoim que se recusavam ao desprendimento da roupa. Atrás de mim ouvi uma criança suplicar por colo - "quero ouvir o tuntuntun do seu coração, mamãe"- num quase tom-manifesto. E fez-me pensar que todo apego carrega dentro de si um tipo de falta e toda súplica carrega dentro de si um tipo de protesto.

No trajeto de mais de duas horas de viagem, eu já havia traçado um plano: chegar em casa, tomar banho, preparar um chá, ligar o computador e escrever. Mas na estação terminal, uma vontade súbita de ir ao parque me invadiu ao ponto de eu considerar inadmissível não assistir à dança milenar das folhas de outono. Fui. Questionei-me: se traçamos planos exatamente para não cumpri-los, a fim de tornar nossas vidas menos controladas, por que ainda os traçamos?

Sentei no banco, admirei as árvores, saudei o vento, observei os corpos. Um casal se aproximou, sentou ao meu lado, e não me viu. Crianças com suas mães se aproximaram, brincaram e não me viram. Esportistas se aproximaram, descansaram, beberam água e não me viram. Uma velhinha com o seu cãozinho se aproximou, deu de comer a ele, e não me viu. Tentei encontrar em meu arsenal de lembranças alguma teoria que explicasse que fenômeno é este que transforma corpos informais em corpos invisíveis. Uma chuva inesperada escorreu pelos céus. De repente eu estava só. Uma poça sob os meus pés se fez e me vi convidado a examiná-la bem de perto. Vi meu rosto refletido. Vi meus olhos negros em busca de palavras não ditas. Entendi mais uma vez que a falta de profundidade produz imagens desalojadas e nos mantém à sombra do que não foi presentificado.

arte: Ferrão

Levantei com minha capa da invisibilidade e segui rumo ao meu apartamento. Tomei banho, preparei um chá, liguei o computador e escrevi. Têm planos que tomam caminhos diferentes para chegar ao lugar desejado. Escrevi cartas de amor para ninguém. Senti-me impotente. Abri a janela, olhei os corpos, me indignei, relutei, rompi o meu silêncio - Eu existo! Olhos assustados e furiosos me viram. É impressionante a capacidade que um grito inesperado tem de intrincar as estruturas de vidro e metal de casas e edifícios povoados por corpos acostumados a serem essencialmente existentes. Um terremoto de efusões me estremeceu de dentro pra fora. Eu existo, tal qual a raiz, o ramo e o fruto da árvore que não esquece que sempre vive. Saltei de mim.

Carros se desgovernaram, prédios se desestabilizaram, pés correram, a polícia fora acionada, helicópteros sobrevoavam, e quando percebi, uma multidão de olhos me observava. Esperavam algo. Um discurso, talvez, ou a morte de um corpo outrora não-visto. Eram olhos contestadores. A TV noticiava: Um corpo estranho não identificado reivindica a sua existência, dependurado na janela de um edifício no centro da cidade. Acabará em suicídio ou é só carnaval? Outras vozes se levantavam: Façam as suas apostas. Quem dá mais? De repente, o meu grito foi transformado em espetáculo. Por um momento quis tomar a minha capa da invisibilidade de volta. Contudo, não havia retorno. Inclinei-me mais um pouco, tomei mais ar e reverberei novamente. Eu existo! E os olhos contestadores transformaram-se em olhos escandalizados, e depois constrangidos, e depois acostumados. Fechei as janelas e simultaneamente sepultei o meu silêncio.

Após tamanho tumulto, mais uma vez compreendi que todo protesto carrega dentro de si um tipo de súplica. Banhei-me com todas as palavras que existem e reinventei a inglória de ser uma corpa-espaço embrulhade por um punhado de matéria informal. Me tridimensionei. Abri uma garrafa de vinho barato. Vestide com a minha pele cor da noite e munide com o meu batom cor de néon, declarei a mim mesme: Eu existo! Pois em mim já não cabe nenhuma sombra do que nunca foi dito. Sou o meu primeiro e último ato, palavra, som, letra, rastro.


Jhonatan Bào é ume jovem artista de 27 anos, não binárie, negre, periférike, graduade em Comunicação Social, que vê na escrita uma forma de reinventar um espaço-tempo onde sua voz seja escutada, e a sua existência pertencente. Atualmente é estudante de atuação na Academia Internacional de Cinema. Pois é também no território da encenação que elu se propõe a ser mais que um corpo no mundo.

foto: Estúdio Ato Um


Ferrão reside em Pouso Alegre, MG. Desde 1982 participa de diversas exposições, coletivas e individuais, pelo Brasil e exterior.

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